domingo, 18 de setembro de 2011
CARTAS INÉDITAS DE FREUD E DE SUA MULHER
De Freud para Martha
Teatrinho de máscaras
7.8.1882
Amada pequena menina,
Os astrônomos afirmam que as estrelas que hoje vemos reluzir começaram a arder há centenas de milhares de anos e talvez hoje estejam se extinguindo. Tal é a dimensão de distância que nos separa delas, até mesmo para um raio de luz que, sem se cansar, percorre mais de 40.000 milhas em um segundo.
Sempre foi difícil para mim imaginar isso, mas agora posso fazê-lo com facilidade quando penso como você sorri diante de minhas cartas cordiais, enquanto minha alma sofre com dúvidas e preocupações, e quando penso como você se aborrece com a minha dureza e a minha desconfiança, enquanto uma medida de ternura, que luta em vão para se expressar, me preenche.
Há dois caminhos para evitar esta incongruência. O primeiro seria me abster de relatar uma atmosfera que supostamente não vai duram nem uma semana. O outro seria fazê-lo mantendo um olhar sereno, acima do teatrinho de mascares que a vida vai encenando conosco.
Desprezamos o primeiro caminho, o caminho da preservação, porque ele pode acabar levando ao estranhamento. Por isso, somos obrigados a fazer aquilo que o segundo caminho nos recomenda.
Imagine que cada duas horas dos quatro dias que se passam entre a minha pergunta e a sua resposta – não, mais 64 das 96 horas – estendessem a tal ponto por meio de pensamentos confusos a respeito de você que a pobre pessoa por fim não fosse mais capaz de distinguir esse intervalo de tempo de um mês ou de um ano.
Imagine quão vazios e, consequentemente, quão breves pareceriam os milênios durante os quais não pensamos em nada, e então você será forçada a admitir que o atraso dos acontecimentos que interessam ao astrônomo não será maior do que aquele que nós dois somos forçados a suportar por causa de seu veraneio em Wandsbeck.
O que nós, ligados de maneira tão íntima e tão insolúvel, teremos que fazer quando acontecer entre nós algo como aquilo que constituía o conteúdo de minhas últimas cartas. Se eu não estiver fisicamente exausto, vou empurrar para um segundo plano as poucas lembranças incômodas associadas aos meus esforços por você e me alegrar pensando em tudo de bom e de belo que vi em você, e em todos os sacrifícios que você fez por mim até hoje.
Você vai habituar-se a continuar amando o pobre homem, apesar de sua antipatia, de seus maus humores esporádicos e de seus julgamentos equivocados, e continuaremos a caminhar juntos alegremente. Se não me engano, hoje efetivamente você não é capaz de dedicar a mim todo o seu amor sem alguma dificuldade, e à custa de autocontrole – e eu só serei capaz de sorrir, ciente de minha vitória, quando você finalmente se tornar minha, seguindo o curso inevitável da natureza, como eu pretendia desde o começo.
Por isso alegre-se, amada Marthinha, o tempo há de chegar – se é que ainda não chegou – no qual tudo aquilo a que um dia você concedeu uma parte de sua estima se tornará uma sombra que não vai perturbá-la mas do que a mim mesmo.
Em breve, terei que retomar meu trabalho, que por meio de um hábito seguido com pontualidade primeiro se torna suportável e depois pode tornar-se estimado. Tenho diante de outros principiantes a vantagem de uma maturidade maior, e de maior consideração por parte dos superiores. Atualmente falta-me a confiança que vem de habilidades conquistadas pelo hábito constante, porém não me faltam conhecimentos teóricos nem a capacidade de observar o corpo humano como um simples objeto, sem me intimidar com as dores dos pacientes.
Durante os poucos dias nos quais me dediquei à cirurgia, realizei algumas pequenas operações com o bisturi, coloquei algumas ataduras com gesso e, por duas vezes, conduzi a anestesia de pacientes por meio de clorofórmio.
Das atividades que realizei, está última é certamente a mais desagradável, pois a morte súbita durante a anestesia por clorofórmio, esse acontecimento temido por todos e incontrolável, faz com que o médico fique em estado permanente de excitação nervosa.
No quarto que me foi designado encontra-se também um menino pobre e perdido, cuja perna precisa ser diariamente lavado com o maior cuidado antes que seja trocado seu curativo, e eu não escapo dessa atividade desagradável e de pouco sucesso.
Os próximos três meses no departamento de cirurgia certamente vão melhorar visivelmente minha habilidades e, se alguma vez eu tiver de retirar do mais lindo dos olhos um grãozinho de poeira, as dores que a querida menina terá de enfrentar nessa grande operação serão muito mais suaves.
Sorte de quem puder em breve ver estes olhos lindos reluzindo de amor! Agora infelizmente Eli está tão apaixonado por Fritz que ele também não consegue largar de Martha e esse novo amor me custa tanto sofrimento quanto o anterior.
Um consolo são agora as três irmãs iniciadas, que sempre conversam, e com as quais pode-se falar de Martha, e que me parecem melhores e mais maduras, como se entendessem como a nossa vida mudou.
Elas também contam algumas coisas com as quais se poderia provocar a Marthinha num momento alegre, por exemplo como ela nos criticou uma vez na casa dos Weiss, e eu sou obrigado a rir quando me lembro quanto ele foi castigada por isso.
Amanhã voltarei a escrever uma cartinha, o dia de hoje é tão irritante e perturbador. Vamos fazer com que passe depressa, para dar lugar a um outro, melhor.
Com cordiais saudações à única e querida menina amada,
Teu Sigmund
De Martha para Freud
O amor encarnado
30.8.1882
10h45 da noite
As profundezas da minha alma percorre, como silenciosa prece noturna, um doce pensar em ti.
Você certamente conhece os encantadores e tristonhos Schilflieder (Cânticos dos Juncos) de Lenau, meu amado? Imagine que estou sozinha (só John está sentado à minha frente, desenhando). Os outros foram, todos, a mais um casamento, para o qual eu também tinha sido insistentemente convidada. Mas resisti bravamente e fiquei em casa.
Aquele que teria sido meu anfitrião é um senhor de boa índole, muito bem-humorado que certamente está indignado com o fato de eu ter declinado do convite. Creio que possa bem imaginar quem era, se fizer um pouco de esforço, certo, meu amado?
Pode rir-se de sua menina tão cheia de si. Eu estou contente por não ter ido e de não ter sido forçada a participar, mais uma vez, de toda aquela confusão, como no outro dia – e por poder, agora, pensar em você sem ser perturbada, e poder escrever para você, meu doce amigo.
À tarde tive a companhia de minha prima Anna, que veio me ver por estar com pena de mim, e que ficou até agora há pouco, e depois trabalhei no pequeno volume de cartas que prometi a você.
Seu doce nome está ali, assim como a data “conhecida”, para que não seja esquecida – ah!, meu amado, trata-se de uma oferenda humilde se comparada a todos os presentes preciosos que já ganhei de você, mas sei que você não faz contas comigo, e, assim que eu puder dispor de um pouquinho mais de sossego para mim mesma, você receberá um trabalho bem-feito, um verdadeiro “amor encarnado” de mim, sim, você está satisfeito com isso e conseguirá ter paciência suficiente?
Sim, agora John também já foi se deitar, agora eu estou totalmente sozinha. Faz-se um grande silêncio, a chuva murmura fora, monótona e melancólica, e dentro de casa nada se move.
Agora, meu amado – agora quero beijar você com o meu coração e sussurraria tantas coisas em seu ouvido que pareceriam tão tolas e loucas no papel – ninguém nos ouvia e ninguém nos via, e nem mesmo um esquilo curioso e envergonhado nos perturbava - , mas não quero sobrecarregar meu coração com pensamentos de como tudo poderia ser ainda mais bonito – eu amo você também de longe e me alegro como uma criança com suas doces cartinhas “pacíficas”- sim, isso também há de passar logo.
150 milhas de distância
Há seis ou oito dias que me vejo obrigada a dirigir meus cânticos de alegria ou de lamento a um “mudo” – graças aos céus só “mudo”, mas não surdo, eu quase diria, não, e tampouco a um cego, pois você é capaz de ler o que eu escrevo, e então eu tenho total “liberdade de fala”, você nem mesmo tem a chance de brigar, quando você não está satisfeito, quando eu digo algo que não lhe agrada, que maravilha!
E, se por acaso ocorrer a você duelar comigo depois, isso também não será possível, e sua boca será fechada – você já sabe com o quê.
Ah, meu amado, meu único, nós vamos continuar a nos entender bem quando não houver 150 milhas a nos separar, não é verdade? (...)
E agora o novo endereço para as suas cartas, não consigo me acostumar a fazer seu nome ceder o primeiro lugar a um título. Sob qual ou junto a qual professor você se encontra agora, meu amado? E continua no departamento de cirurgia? E você está esperando se acostumar ao trabalho aos poucos, não é, meu amado, em vez de se atirar com todas as forças, outra vez, nessa nova atividade?
Me desculpe pela intromissão, mas fico tão feliz em saber que você está recuperado e saudável! Vamos permanecer assim, enquanto pudermos.
E agora boa noite. Acho que há muito já se passou a hora dos espíritos, e vejo que estou bem cansada. E me ocorre que já não vou receber a resposta a esta carta. Terrível!
Fique bem, meu amado, fique feliz e alegre como
Sua Martha
E saudações às queridas meninas!
De Freud para Martha
Você pertence a mim
Domingo à noite,
22 de outubro de 1882
Minha doce Marthinha,
De verdade, minha doce menina: cada linha de sua carta renova em mim o orgulho de ter conquistado você, de poder servir por você. E se existe algo que é capaz de romper este orgulho, isso é a consciência que existe em mim há tanto tempo – você sabe desde quando – de que eu nunca conseguiria perder você, e que é reforçada pela sua carta. Já fui tão rico que é difícil que venha a me tornar ainda mais rico, mas há coisas que eu nunca vou me cansar de ouvir de você.
Pelo menos pude rever você, sentir o aperto de sua querida mão e, portanto, desconsidero o pequeno desconforto pelo qual tive que passar para poder alcançar isso.
Sua carta está à minha frente e eu penso como parecem graciosas até mesmo as contradições que há em você, quão belos são os temas, até mesmo onde mais discordamos, e como as nobres palavras de Antígona de Sófocles parecem ter sido pronunciadas inteiramente para você: “É para amar com você, e não para odiar com você, que eu estou aqui”.
Contudo, admita que estou querendo escapar de nossas discussões com algumas palavras cordiais e que, justamente por me sentir tão seguro de você, aponto com total sinceridade para a nossa situação e para as diferenças entre nossas opiniões.
E se, ao fazer assim, eu estou agindo, como de hábito, sem consideração, pelo menos você sabe de tudo o que penso – até mesmo do pior. Você, no entanto, por causa de um impulso protetor, do qual eu não preciso, costuma encobrir os seus pensamentos mais íntimos.
Por isso, fique sabendo que eu penso que, de verdade, você não me ama mais do que eu amo você. Se eu imagino minha vida atual sem você, tudo desaba, por falta de sustentação e de interesse.
Você é a meta à qual eu me dirijo, o ponto de convergência de todos os meus desejos, por você eu transformei alguém que até então me era estranho em meu amigo mais próximo e mais íntimo, por você me dispus a dedicar a uma mulher que não é minha mãe as honras devidas por um filho, a amar uma menina que não é nem minha irmã antes que minhas próprias irmãs.
Gata borralheira
Você sabe que nem tudo deu certo. Somente conquistei o amigo. A mãe e a irmã permaneceram como estranhas para mim, mas por você eu continuo a esperar e a amar. Dissolvi todos os laços mais íntimos que queriam significar para mim tanto quanto você.
Você certamente também me ama, como uma menina querida como você é capaz de amar, mas você permaneceu uma Bernays. Minha família e meus amigos não significam nada para você, um humor de Eli é tão importante para você quanto um desejo sentido meu, você não se aproximou de minhas irmãs, nem as ama, embora eu ache que elas mereçam e saiba que elas se alegraram tão profundamente com você.
Quando expresso algum julgamento severo sobre alguns dos seus familiares, você não se aborrece porque estou cometendo uma injustiça – você não é capaz de me desmentir – mas sim porque estou falando de algum dos seus. Eu sei bem que há coisas que não posso e nem tenho como tirar de você, coisas que você considera tanto quanto a mim mesmo, e das quais você se orgulha, como você mesma diz.
Não tenho como imitar você e apenas espero que chegue um dia no qual eu não precise dizer que entreguei os meus, que eu consideraria mais do que os seus, sem vingança. No momento, apensas posso reconhecer a minha insatisfação, mas agora não se trata disso.
Eu não disse que você era a Gata Borralheira em sua casa, eu só exigi que você não se deixasse tratar como uma criança sem vontade, e você não tem como negar que é tratada assim. Você é a escrava doméstica de Eli e estremece diante de uma simples piscadela dele. Daí vem o grande amor que ele tem por você, e isso é totalmente indigno.
Tenho a sorte de conhecer seu ser verdadeiro, um ser humano com inteligência e vontade. De mim você não acata nada.
Só gostarei que você mostrasse um pouco da força que mostra diante de mim a seu irmão e à sua mãe. Você diz que isso é insignificante, mas eu não creio. Eu temo o hábito de “apertar-se” também em você, minha querida Martha. Um ser humano deve manter a cabeça livre em todas as circunstâncias.
A única característica que me é antipática em minha menina tão perfeita é, precisamente, essa sua tendência a sacrificar tanto do seu ser em nome do conforto e do aconchego, como diz o idioma dos Bernays. Isso me lembra, de maneira muito dolorosa, de um horrível provérbio pronunciado por Minna: “Se Martha estivesse sentada à janela e o mundo estivesse vindo abaixo ela diria: ‘Que pensa, eu estava tão acomodada.”’
Sem descanso
Desde que eu ouvi essas palavras, elas têm me devorado por dentro e estou firmemente decidido a não descansar enquanto ainda for capaz de encontrar um rastro sequer disso em minha Martha.
Pode responder com fúria, pois eu não vou voltar tão cedo à casa dos Bernays. Não me agrada ver como, num lar tão preocupado com suas formalidades, o dono da casa transgride impunemente as mínimas regras de convívio com sua total ausência de restrições.
Você permanece minha e vai se tornar como eu quero. Não se engane: Elise, Eli, Fritz e todos os outros já estão mortos para sua sensibilidade. Você pertence inteiramente a mim, e você já percebeu que não estou disposto a dividir você com ninguém. Com cordiais saudações à doce amada,
Sigmund
De Martha para Freud
Amado, malvado e querido
2.9.1882
Meu bom amado, melhor, desagradável, insuportável amigo, meu delicado, maleável tirano, meu Sigi!
Não tenho como colocar um título nesta carta, pois eles estão todos sentados à minha volta. Eli acaba de sair para ir ao centro da cidade, e eu estou aproveitando os poucos minutos que ainda tenho antes de dormir para escrever algumas palavras. Muito obrigado, prezado senhor doutor, por sua grande atenção.
Como o senhor foi capaz de adivinhar quem é o meu poeta predileto? Apenas tenho que lhe confessar que não gosto de textos escritos no verso de fotografias, e que seu estilo me pareceu um tanto grosseiro. Mas não é nada gentil dizer algo assim a alguém...
Seja como for, não tenho nenhuma má intenção, meu amado, único, doce, bom doutor. Excetuando-se isso, estou bem satisfeita com seu estilo e talvez o senhor precise ter um pouco mais de paciência com o meu. Imagine a que ponto eu fui forçada a me superar: não perguntei nada a Eli, nem sobre você, nem sobre as meninas, aliás, quase ainda não tivemos a oportunidade de ficar a sós, pois sempre há um torvelinho terrível, tanta gente à nossa volta...
Mas isso não importa porque sei de tudo sobre você, e em primeira mão. É terrível não receber nenhuma carta sua, e talvez tenha sido um excesso de cautela meu, mas, seja como for, vamos sobreviver a esses poucos dias e é melhor sermos cautelosos do que arriscarmos tudo para satisfazer um pequeno desejo, não é verdade, meu amado? (...)
Sentada sozinha
Se eu penso em você, amado? Em todas as horas. Tive que ouvir reprovações e perguntas urgentes de Eli, que queria saber por que eu sempre queria voltar para casa, “se isso é uma infantilidade, uma tolice”, e se eu não estava me divertindo. Que mamãe estava com saudades de mim e não querida confessá-lo era algo que ele não queria ouvir. (...)
Boa noite e pense na sua Martha! Ouviu?!
Meu amado, você tem sido bem paciente, não é? Sempre que chego em casa me informo exatamente sobre o seu comportamento – e quando ouço algo de ruim, me irrito profundamente, isso eu lhe digo desde já.
Entrementes todos os outros já foram se deitar e eu estou sentada sozinha, a grande folha de papel de carta de meu bom tio está bem cheia, e agora ainda rapidamente envio um beijo a você, meu amado, malvado e querido homem. (...)
(Traduções de Luis Krausz para a Revista Cult nº 161)
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