quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

RECEITA DE ANO NOVO - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Para você ganhar
um belíssimo Ano Novo cor de arco-íris,
ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação
como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)

para você ganhar um ano não apenas pintado de novo,
remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)

novo espontâneo,
que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia, se ama,
se compreende, se trabalha,

você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.

Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa, justiça
entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados,
começando pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano-novo que mereça este nome,
você, meu caro,
tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo,
eu sei que não é fácil,
mas tente,
experimente, consciente.

É dentro de você
que o Ano Novo cochila
e espera
desde sempre.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Ana Cristina César - A Ponto de Partir



Ana Cristina Cruz César, nasceu no Rio de Janeiro em 2 de junho de 1952, tendo, desde cedo, demonstrado talento e gosto pela arte de escrever. Já em 1959, tinha as primeiras poesias publicadas no “Suplemento Literário” da “Tribuna da Imprensa”. Foi Licenciada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1975, obtendo o grau de Mestre em Comunicação, pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1979 e Master of Arts in Theory and Practice of Literary Translation, pela Essex University, na Inglaterra em 1980.



Além de suas inumeráveis poesias e cartas, escreveu para diversos jornais e revistas e traduziu diversos autores estrangeiros. Suicidou-se em 29 de outubro de 1983, aos 31 anos. Viveu entre Niterói, Copacabana e Londres onde residiu por algum tempo.

FEVEREIRO

Quando desisto é que surges

quando ruges é que caio.

Quando desmaio é que corres

quando desmaio me acho

quando calo me curas

e se te misturo me perco

(assobia!)
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Noite Carioca

Diálogo de surdos, não: amistoso no frio.
Atravanco na contramão. Suspiros no
contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta
do mundo: essa que não tem nenhum segredo.
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é muito claro
amor
bateu
para ficar
nesta varanda descoberta
a anoitecer sobre a cidade
em construção
sobre a pequena constrição
no teu peito
angústia de felicidade
luzes de automóveis
riscando o tempo
canteiros de obras
em repouso
recuo súbito da trama
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O Homem Público N. 1 (Antologia)




Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

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Fagulha



Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.
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A Ponto de Partir



A ponto de
partir, já sei
que nossos olhos
sorriam para sempre
na distância.
Parece pouco?
Chão de sal grosso, e ouro que se racha.
A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância.
Lentes escuríssimas sob os pilotis.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Luiz Tatit - Felicidade


FELICIDADE

Não sei porque eu tô tão feliz
Não há motivo algum pra ter tanta felicidade
Não sei o que que foi que eu fiz
Se eu fui perdendo o senso de realidade
Um sentimento indefinido
Foi me tomando ao cair da tarde
Infelizmente era felicidade
Claro que é muito gostoso
Claro que eu não acredito
Felicidade assim sem mais nem menos é muito esquisito

Não sei porque eu tô tão feliz
Preciso refletir um pouco e sair do barato
Não posso continuar assim feliz
Como se fosse um sentimento inato
Sem ter o menor motivo
Sem uma razão de fato
Ser feliz assim é meio chato
E as coisas nem vão muito bem
Perdi o dinheiro que eu tinha guardado
E pra completar depois disso
Eu fui despedido e estou desempregado
Amor que sempre foi meu forte
Não tenho tido muita sorte
Estou sozinho, sem saída, sem dinheiro e sem comida
E feliz da vida!!!

Não sei porque eu tô tão feliz
Vai ver que é pra esconder no fundo uma infelicidade
Pensei que fosse por aí, fiz todas terapias que tem na cidade
A conclusão veio depressa e sem nenhuma novidade
O meu problema era felicidade
Não fiquei desesperado, não, fui até bem razoável
Felicidade quando é no começo ainda é controlável

Não sei o que foi que eu fiz
Pra merecer estar radiante de felicidade
Mais fácil ver o que não fiz
Fiz muito pouca aqui pra minha idade
Não me dediquei a nada
Tudo eu fiz pela metade, porque então tanta felicidade
E dizem que eu só penso em mim, que sou muito centrado
Que eu sou egoísta
Tem gente que põe meus defeitos em ordem alfabética
E faz uma lista
Por isso não se justifica tanto privilégio de felicidade
Independente dos deslizes dentre todos os felizes
Sou o mais feliz

Não sei porque eu tô tão feliz
E já nem sei se é necessário ter um bom motivo
A busca de uma razão me deu dor de cabeça, acabou comigo
Enfim, eu já tentei de tudo, enfim eu quis ser conseqüente
Mas desisti, vou ser feliz pra sempre
Peço a todos com licença, vamos liberar o pedaço
Felicidade assim desse tamanho
Só com muito espaço!

domingo, 16 de outubro de 2011

QUEM NÃO AMA A SOLIDÃO, NÃO AMA A LIBERDADE-Arthur Schopenhauer


Nenhum caminho é mais errado para a felicidade do que a vida no grande mundo, às fartas e em festanças (high life), pois, quando tentamos transformar a nossa miserável existência numa sucessão de alegrias, gozos e prazeres, não conseguimos evitar a desilusão; muito menos o seu acompanhamento obrigatório, que são as mentiras recíprocas.

Assim como o nosso corpo está envolto em vestes, o nosso espírito está revestido de mentiras. Os nossos dizeres, as nossas acções, todo o nosso ser é mentiroso, e só por meio desse invólucro pode-se, por vezes, adivinhar a nossa verdadeira mentalidade, assim como pelas vestes se adivinha a figura do corpo.

Antes de mais nada, toda a sociedade exige necessariamente uma acomodação mútua e uma temperatura; por conseguinte, quanto mais numerosa, tanto mais enfadonha será. Cada um só pode ser ele mesmo, inteiramente, apenas pelo tempo em que estiver sozinho. Quem, portanto, não ama a solidão, também não ama a liberdade: apenas quando se está só é que se está livre.

A coerção é a companheira inseparável de toda a sociedade, que ainda exige sacrifícios tão mais difíceis quanto mais significativa for a própria individualidade. Dessa forma, cada um fugirá, suportará ou amará a solidão na proporção exacta do valor da sua personalidade. Pois, na solidão, o indivíduo mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o grande espírito, toda a sua grandeza; numa palavra: cada um sente o que é.

Ademais, quanto mais elevada for a posição de uma pessoa na escala hierárquica da natureza, tanto mais solitária será, essencial e inevitavelmente. Assim, é um benefício para ela se à solidão física corresponder a intelectual. Caso contrário, a vizinhança frequente de seres heterogéneos causa um efeito incómodo e até mesmo adverso sobre ela, ao roubar-lhe seu «eu» sem nada lhe oferecer em troca. Além disso, enquanto a natureza estabeleceu entre os homens a mais ampla diversidade nos domínios moral e intelectual, a sociedade, não tomando conhecimento disso, iguala todos os seres ou, antes, coloca no lugar da diversidade as diferenças e degraus artificiais de classe e posição, com frequência diametralmente opostos à escala hierárquica da natureza.

Nesse arranjo, aqueles que a natureza situou em baixo encontram-se em óptima situação; os poucos, entretanto, que ela colocou em cima, saem em desvantagem. Como consequência, estes costumam esquivar-se da sociedade, na qual, ao tornar-se numerosa, a vulgaridade domina.

Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'

domingo, 18 de setembro de 2011

CARTAS INÉDITAS DE FREUD E DE SUA MULHER



De Freud para Martha
Teatrinho de máscaras
7.8.1882

Amada pequena menina,



Os astrônomos afirmam que as estrelas que hoje vemos reluzir começaram a arder há centenas de milhares de anos e talvez hoje estejam se extinguindo. Tal é a dimensão de distância que nos separa delas, até mesmo para um raio de luz que, sem se cansar, percorre mais de 40.000 milhas em um segundo.

Sempre foi difícil para mim imaginar isso, mas agora posso fazê-lo com facilidade quando penso como você sorri diante de minhas cartas cordiais, enquanto minha alma sofre com dúvidas e preocupações, e quando penso como você se aborrece com a minha dureza e a minha desconfiança, enquanto uma medida de ternura, que luta em vão para se expressar, me preenche.

Há dois caminhos para evitar esta incongruência. O primeiro seria me abster de relatar uma atmosfera que supostamente não vai duram nem uma semana. O outro seria fazê-lo mantendo um olhar sereno, acima do teatrinho de mascares que a vida vai encenando conosco.

Desprezamos o primeiro caminho, o caminho da preservação, porque ele pode acabar levando ao estranhamento. Por isso, somos obrigados a fazer aquilo que o segundo caminho nos recomenda.

Imagine que cada duas horas dos quatro dias que se passam entre a minha pergunta e a sua resposta – não, mais 64 das 96 horas – estendessem a tal ponto por meio de pensamentos confusos a respeito de você que a pobre pessoa por fim não fosse mais capaz de distinguir esse intervalo de tempo de um mês ou de um ano.

Imagine quão vazios e, consequentemente, quão breves pareceriam os milênios durante os quais não pensamos em nada, e então você será forçada a admitir que o atraso dos acontecimentos que interessam ao astrônomo não será maior do que aquele que nós dois somos forçados a suportar por causa de seu veraneio em Wandsbeck.

O que nós, ligados de maneira tão íntima e tão insolúvel, teremos que fazer quando acontecer entre nós algo como aquilo que constituía o conteúdo de minhas últimas cartas. Se eu não estiver fisicamente exausto, vou empurrar para um segundo plano as poucas lembranças incômodas associadas aos meus esforços por você e me alegrar pensando em tudo de bom e de belo que vi em você, e em todos os sacrifícios que você fez por mim até hoje.

Você vai habituar-se a continuar amando o pobre homem, apesar de sua antipatia, de seus maus humores esporádicos e de seus julgamentos equivocados, e continuaremos a caminhar juntos alegremente. Se não me engano, hoje efetivamente você não é capaz de dedicar a mim todo o seu amor sem alguma dificuldade, e à custa de autocontrole – e eu só serei capaz de sorrir, ciente de minha vitória, quando você finalmente se tornar minha, seguindo o curso inevitável da natureza, como eu pretendia desde o começo.

Por isso alegre-se, amada Marthinha, o tempo há de chegar – se é que ainda não chegou – no qual tudo aquilo a que um dia você concedeu uma parte de sua estima se tornará uma sombra que não vai perturbá-la mas do que a mim mesmo.

Em breve, terei que retomar meu trabalho, que por meio de um hábito seguido com pontualidade primeiro se torna suportável e depois pode tornar-se estimado. Tenho diante de outros principiantes a vantagem de uma maturidade maior, e de maior consideração por parte dos superiores. Atualmente falta-me a confiança que vem de habilidades conquistadas pelo hábito constante, porém não me faltam conhecimentos teóricos nem a capacidade de observar o corpo humano como um simples objeto, sem me intimidar com as dores dos pacientes.

Durante os poucos dias nos quais me dediquei à cirurgia, realizei algumas pequenas operações com o bisturi, coloquei algumas ataduras com gesso e, por duas vezes, conduzi a anestesia de pacientes por meio de clorofórmio.

Das atividades que realizei, está última é certamente a mais desagradável, pois a morte súbita durante a anestesia por clorofórmio, esse acontecimento temido por todos e incontrolável, faz com que o médico fique em estado permanente de excitação nervosa.

No quarto que me foi designado encontra-se também um menino pobre e perdido, cuja perna precisa ser diariamente lavado com o maior cuidado antes que seja trocado seu curativo, e eu não escapo dessa atividade desagradável e de pouco sucesso.

Os próximos três meses no departamento de cirurgia certamente vão melhorar visivelmente minha habilidades e, se alguma vez eu tiver de retirar do mais lindo dos olhos um grãozinho de poeira, as dores que a querida menina terá de enfrentar nessa grande operação serão muito mais suaves.

Sorte de quem puder em breve ver estes olhos lindos reluzindo de amor! Agora infelizmente Eli está tão apaixonado por Fritz que ele também não consegue largar de Martha e esse novo amor me custa tanto sofrimento quanto o anterior.

Um consolo são agora as três irmãs iniciadas, que sempre conversam, e com as quais pode-se falar de Martha, e que me parecem melhores e mais maduras, como se entendessem como a nossa vida mudou.

Elas também contam algumas coisas com as quais se poderia provocar a Marthinha num momento alegre, por exemplo como ela nos criticou uma vez na casa dos Weiss, e eu sou obrigado a rir quando me lembro quanto ele foi castigada por isso.

Amanhã voltarei a escrever uma cartinha, o dia de hoje é tão irritante e perturbador. Vamos fazer com que passe depressa, para dar lugar a um outro, melhor.

Com cordiais saudações à única e querida menina amada,
Teu Sigmund

De Martha para Freud
O amor encarnado
30.8.1882
10h45 da noite



As profundezas da minha alma percorre, como silenciosa prece noturna, um doce pensar em ti.

Você certamente conhece os encantadores e tristonhos Schil­flieder (Cânticos dos Juncos) de Lenau, meu amado? Imagine que estou sozinha (só John está sentado à minha frente, desenhando). Os outros foram, todos, a mais um casamento, para o qual eu também tinha sido insistentemente convidada. Mas resisti bravamente e fiquei em casa.

Aquele que teria sido meu anfitrião é um senhor de boa índole, muito bem-humorado que certamente está indignado com o fato de eu ter declinado do convite. Creio que possa bem imaginar quem era, se fizer um pouco de esforço, certo, meu amado?

Pode rir-se de sua menina tão cheia de si. Eu estou contente por não ter ido e de não ter sido forçada a participar, mais uma vez, de toda aquela confusão, como no outro dia – e por poder, agora, pensar em você sem ser perturbada, e poder escrever para você, meu doce amigo.

À tarde tive a companhia de minha prima Anna, que veio me ver por estar com pena de mim, e que ficou até agora há pouco, e depois trabalhei no pequeno volume de cartas que prometi a você.

Seu doce nome está ali, assim como a data “conhecida”, para que não seja esquecida – ah!, meu amado, trata-se de uma oferenda humilde se comparada a todos os presentes preciosos que já ganhei de você, mas sei que você não faz contas comigo, e, assim que eu puder dispor de um pouquinho mais de sossego para mim mesma, você receberá um trabalho bem-feito, um verdadeiro “amor encarnado” de mim, sim, você está satisfeito com isso e conseguirá ter paciência suficiente?

Sim, agora John também já foi se deitar, agora eu estou totalmente sozinha. Faz-se um grande silêncio, a chuva murmura fora, monótona e melancólica, e dentro de casa nada se move.

Agora, meu amado – agora quero beijar você com o meu coração e sussurraria tantas coisas em seu ouvido que pareceriam tão tolas e loucas no papel – ninguém nos ouvia e ninguém nos via, e nem mesmo um esquilo curioso e envergonhado nos perturbava - , mas não quero sobrecarregar meu coração com pensamentos de como tudo poderia ser ainda mais bonito – eu amo você também de longe e me alegro como uma criança com suas doces cartinhas “pacíficas”- sim, isso também há de passar logo.

150 milhas de distância

Há seis ou oito dias que me vejo obrigada a dirigir meus cânticos de alegria ou de lamento a um “mudo” – graças aos céus só “mudo”, mas não surdo, eu quase diria, não, e tampouco a um cego, pois você é capaz de ler o que eu escrevo, e então eu tenho total “liberdade de fala”, você nem mesmo tem a chance de brigar, quando você não está satisfeito, quando eu digo algo que não lhe agrada, que maravilha!

E, se por acaso ocorrer a você duelar comigo depois, isso também não será possível, e sua boca será fechada – você já sabe com o quê.

Ah, meu amado, meu único, nós vamos continuar a nos entender bem quando não houver 150 milhas a nos separar, não é verdade? (...)

E agora o novo endereço para as suas cartas, não consigo me acostumar a fazer seu nome ceder o primeiro lugar a um título. Sob qual ou junto a qual professor você se encontra agora, meu amado? E continua no departamento de cirurgia? E você está esperando se acostumar ao trabalho aos poucos, não é, meu amado, em vez de se atirar com todas as forças, outra vez, nessa nova atividade?

Me desculpe pela intromissão, mas fico tão feliz em saber que você está recuperado e saudável! Vamos permanecer assim, enquanto pudermos.

E agora boa noite. Acho que há muito já se passou a hora dos espíritos, e vejo que estou bem cansada. E me ocorre que já não vou receber a resposta a esta carta. Terrível!

Fique bem, meu amado, fique feliz e alegre como
Sua Martha
E saudações às queridas meninas!

De Freud para Martha
Você pertence a mim
Domingo à noite,
22 de outubro de 1882

Minha doce Marthinha
,

De verdade, minha doce menina: cada linha de sua carta renova em mim o orgulho de ter conquistado você, de poder servir por você. E se existe algo que é capaz de romper este orgulho, isso é a consciência que existe em mim há tanto tempo – você sabe desde quando – de que eu nunca conseguiria perder você, e que é reforçada pela sua carta. Já fui tão rico que é difícil que venha a me tornar ainda mais rico, mas há coisas que eu nunca vou me cansar de ouvir de você.

Pelo menos pude rever você, sentir o aperto de sua querida mão e, portanto, desconsidero o pequeno desconforto pelo qual tive que passar para poder alcançar isso.

Sua carta está à minha frente e eu penso como parecem graciosas até mesmo as contradições que há em você, quão belos são os temas, até mesmo onde mais discordamos, e como as nobres palavras de Antígona de Sófocles parecem ter sido pronunciadas inteiramente para você: “É para amar com você, e não para odiar com você, que eu estou aqui”.
Contudo, admita que estou querendo escapar de nossas discussões com algumas palavras cordiais e que, justamente por me sentir tão seguro de você, aponto com total sinceridade para a nossa situação e para as diferenças entre nossas opiniões.

E se, ao fazer assim, eu estou agindo, como de hábito, sem consideração, pelo menos você sabe de tudo o que penso – até mesmo do pior. Você, no entanto, por causa de um impulso protetor, do qual eu não preciso, costuma encobrir os seus pensamentos mais íntimos.

Por isso, fique sabendo que eu penso que, de verdade, você não me ama mais do que eu amo você. Se eu imagino minha vida atual sem você, tudo desaba, por falta de sustentação e de interesse.

Você é a meta à qual eu me dirijo, o ponto de convergência de todos os meus desejos, por você eu transformei alguém que até então me era estranho em meu amigo mais próximo e mais íntimo, por você me dispus a dedicar a uma mulher que não é minha mãe as honras devidas por um filho, a amar uma menina que não é nem minha irmã antes que minhas próprias irmãs.

Gata borralheira

Você sabe que nem tudo deu certo. Somente conquistei o amigo. A mãe e a irmã permaneceram como estranhas para mim, mas por você eu continuo a esperar e a amar. Dissolvi todos os laços mais íntimos que queriam significar para mim tanto quanto você.

Você certamente também me ama, como uma menina querida como você é capaz de amar, mas você permaneceu uma Bernays. Minha família e meus amigos não significam nada para você, um humor de Eli é tão importante para você quanto um desejo sentido meu, você não se aproximou de minhas irmãs, nem as ama, embora eu ache que elas mereçam e saiba que elas se alegraram tão profundamente com você.

Quando expresso algum julgamento severo sobre alguns dos seus familiares, você não se aborrece porque estou cometendo uma injustiça – você não é capaz de me desmentir – mas sim porque estou falando de algum dos seus. Eu sei bem que há coisas que não posso e nem tenho como tirar de você, coisas que você considera tanto quanto a mim mesmo, e das quais você se orgulha, como você mesma diz.

Não tenho como imitar você e apenas espero que chegue um dia no qual eu não precise dizer que entreguei os meus, que eu consideraria mais do que os seus, sem vingança. No momento, apensas posso reconhecer a minha insatisfação, mas agora não se trata disso.

Eu não disse que você era a Gata Borralheira em sua casa, eu só exigi que você não se deixasse tratar como uma criança sem vontade, e você não tem como negar que é tratada assim. Você é a escrava doméstica de Eli e estremece diante de uma simples piscadela dele. Daí vem o grande amor que ele tem por você, e isso é totalmente indigno.

Tenho a sorte de conhecer seu ser verdadeiro, um ser humano com inteligência e vontade. De mim você não acata nada.
Só gostarei que você mostrasse um pouco da força que mostra diante de mim a seu irmão e à sua mãe. Você diz que isso é insignificante, mas eu não creio. Eu temo o hábito de “apertar-se” também em você, minha querida Martha. Um ser humano deve manter a cabeça livre em todas as circunstâncias.

A única característica que me é antipática em minha menina tão perfeita é, precisamente, essa sua tendência a sacrificar tanto do seu ser em nome do conforto e do aconchego, como diz o idioma dos Bernays. Isso me lembra, de maneira muito dolorosa, de um horrível provérbio pronunciado por Minna: “Se Martha estivesse sentada à janela e o mundo estivesse vindo abaixo ela diria: ‘Que pensa, eu estava tão acomodada.”’

Sem descanso

Desde que eu ouvi essas palavras, elas têm me devorado por dentro e estou firmemente decidido a não descansar enquanto ainda for capaz de encontrar um rastro sequer disso em minha Martha.

Pode responder com fúria, pois eu não vou voltar tão cedo à casa dos Bernays. Não me agrada ver como, num lar tão preocupado com suas formalidades, o dono da casa transgride impunemente as mínimas regras de convívio com sua total ausência de restrições.

Você permanece minha e vai se tornar como eu quero. Não se engane: Elise, Eli, Fritz e todos os outros já estão mortos para sua sensibilidade. Você pertence inteiramente a mim, e você já percebeu que não estou disposto a dividir você com ninguém. Com cordiais saudações à doce amada,

Sigmund

De Martha para Freud
Amado, malvado e querido
2.9.1882


Meu bom amado, melhor, desagradável, insuportável amigo, meu delicado, maleável tirano, meu Sigi!

Não tenho como colocar um título nesta carta, pois eles estão todos sentados à minha volta. Eli acaba de sair para ir ao centro da cidade, e eu estou aproveitando os poucos minutos que ainda tenho antes de dormir para escrever algumas palavras. Muito obrigado, prezado senhor doutor, por sua grande atenção.

Como o senhor foi capaz de adivinhar quem é o meu poeta predileto? Apenas tenho que lhe confessar que não gosto de textos escritos no verso de fotografias, e que seu estilo me pareceu um tanto grosseiro. Mas não é nada gentil dizer algo assim a alguém...

Seja como for, não tenho nenhuma má intenção, meu amado, único, doce, bom doutor. Excetuando-se isso, estou bem satisfeita com seu estilo e talvez o senhor precise ter um pouco mais de paciência com o meu. Imagine a que ponto eu fui forçada a me superar: não perguntei nada a Eli, nem sobre você, nem sobre as meninas, aliás, quase ainda não tivemos a oportunidade de ficar a sós, pois sempre há um torvelinho terrível, tanta gente à nossa volta...

Mas isso não importa porque sei de tudo sobre você, e em primeira mão. É terrível não receber nenhuma carta sua, e talvez tenha sido um excesso de cautela meu, mas, seja como for, vamos sobreviver a esses poucos dias e é melhor sermos cautelosos do que arriscarmos tudo para satisfazer um pequeno desejo, não é verdade, meu amado? (...)

Sentada sozinha

Se eu penso em você, amado? Em todas as horas. Tive que ouvir reprovações e perguntas urgentes de Eli, que queria saber por que eu sempre queria voltar para casa, “se isso é uma infantilidade, uma tolice”, e se eu não estava me divertindo. Que mamãe estava com saudades de mim e não querida confessá-lo era algo que ele não queria ouvir. (...)
Boa noite e pense na sua Martha! Ouviu?!

Meu amado, você tem sido bem paciente, não é? Sempre que chego em casa me informo exatamente sobre o seu comportamento – e quando ouço algo de ruim, me irrito profundamente, isso eu lhe digo desde já.

Entrementes todos os outros já foram se deitar e eu estou sentada sozinha, a grande folha de papel de carta de meu bom tio está bem cheia, e agora ainda rapidamente envio um beijo a você, meu amado, malvado e querido homem. (...)

(Traduções de Luis Krausz para a Revista Cult nº 161)

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

PAULO LEMINSKI


Paulo Leminski nasceu em Curitiba em 1945. Poeta de vanguarda, letrista de música popular, escritor, tradutor, professor e, pode parecer inusitado, mas ele também era faixa-preta de judô.
Mestiço de pai polaco com mãe negra, sempre chamou a atenção por sua intelectualidade, cultura e genialidade. Estava sempre à beira de uma explosão e assim produziu muito: é dono de uma extensa e relevante obra.


Incenso fosse música


isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além



Bem no fundo

no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nosso problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela -- silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás nã há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas


Apagar-me

Apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme.


Três Metades


Meio dia,
um dia e meio,
meio dia, meio noite,
metade deste poema
não sai na fotografia,
metade, metade foi-se.

Mas eis que a terça metade,
aquela que é menos dose
de matemática verdade
do que soco, tiro, ou coice,
vai e vem como coisa
de ou, de nem, ou de quase.

Como se a gente tivesse
metades que não combinam,
três partes, destempestades,
três vezes ou vezes três,
como se quase, existindo,
só nos faltasse o talvez


Por um lindésimo de segundo


tudo em mim
anda a mil
tudo assim
tudo por um fio
tudo feito
tudo estivesse no cio
tudo pisando macio
tudo psiu

tudo em minha volta
anda às tontas
como se as coisas
fossem todas
afinal de contas

domingo, 17 de julho de 2011

KAFKA E O PODER DE ESTABELECER RELAÇÕES ESTRANHAS.

O escritor e poeta português valter hugo mãe(minúsculas) tem Kafka com mestre e inspiração, em recente entrevista no Brasil disse: " Herdei de Kafka a possibilidade de amar alguém mesmo quando esse alguém erra diante de mim (nós)".

Franz Kafka nasceu em 3 de julho de 1883, em Praga, cidade que na época pertencia à monarquia austro-húngara. Filho de um abastado comerciante judeu, Kafka cresce sob as influências de três culturas: a judaica, a tcheca e a alemã.

"Não é necessário sair de casa.
Permaneça em sua mesa e ouça.
Não apenas ouça, mas espere.
Não apenas espere, mas fique sozinho em silêncio.
Então o mundo se apresentará desmascarado.
Em êxtase, se dobrará sobre os seus pés".

Franz Kafka


Na adolescência, declara-se socialista e ateu. Participa de reuniões com grupos anarquistas e, no fim da vida, engaja-se no movimento sionista. Cursa Direito em Praga, formando-se em 1906. Passa a trabalhar em companhias de seguros e, em paralelo, dedica-se à Literatura. Em 1917, é obrigado a afastar-se do trabalho devido à tuberculose.Fez parte, junto com outros escritores da época, da chamada Escola de Praga. Esse movimento era basicamente uma maneira de criação artística alicerçada em uma grande atração pelo realismo, uma inclinação à metafísica e uma síntese entre uma racional lucidez e um forte traço irônico. Boa parte de sua obra foi publicada postumamente.


A partida

Ordenei que tirassem meu cavalo da estrebaria. O criado não me entendeu. Fui pessoalmente à estrebaria, selei o cavalo e montei-o. Ouvi soar à distância uma trompa, perguntei-lhe o que aquilo significava. Ele não sabia de nada e não havia escutado nada. Perto do portão ele me deteve e perguntou: – Para onde cavalga senhor? – Não sei direito – eu disse –, só sei que é para fora daqui, fora daqui. Fora daqui sem parar; só assim posso alcançar meu objetivo. – Conhece então o seu objetivo? – perguntou ele. – Sim – respondi – Eu já disse: “fora-daqui”, é esse o meu objetivo. – O senhor não leva provisões – disse ele. – Não preciso de nenhuma – disse eu. – A viagem é tão longa que tenho de morrer de fome se não receber nada no caminho. Nenhuma provisão pode me salvar. Por sorte esta viagem é realmente imensa.


De Noite


Submergir-se em a noite! Assim como às vêzes se enterra a cabeça no peito para refletir, fundir-se assim por completo em a noite. Em redor dormem os homens. Um pequeno espetáculo, um auto-engado inocente, é o dormir em casas, em camas sólidas, sob teto seguro, estendidos ou encolhidos, sobre colchões, entre lençóis, sob cobertas; na realidade, encontram-se reunidos como outrora uma vez e como depois em uma comarca deserta: um acampamento à intempérie, uma oncontável quantidade de pessoas, um exército, um povo sob um céu frio, sobre uma terra fria, atirados ao solo ali onde antes se estêve de pé, com a fronte apertada contra o braço, e a cara contra o solo, respirando tranquilamente. E tu velas, és um dos vigias, encontras ao próximo agitando o madeiro aceso que tomaste do montão de estilhas, junto a ti. Por que velas? Alguém tem que velar, se disse. Alguém precisa estar aí.




Renúncia!



Era muito cedo, pela manhã, as ruas estavam limpas e vazias, eu ia à estação. Ao verificar a hora em meu relógio com a do relógio de uma torre, vi que era muito mais tarde do que eu acreditara, tinha que apressar-me bastante; o susto que me produziu esta descoberta me fêz perder a tranquilidade, não me orientava ainda muito bem naquela cidade. Felizmente havia um policial nas proximidades, fui até ele e perguntei-lhe, sem fôlego, qual era o caminho. Sorriu e disse: -Por mim queres conhecer o caminho? -Sim - disse -, já que não posso encontrá-lo por mim mesmo. -Renuncia, renuncia - disse e voltou-se com grande ímpeto, como as pessoas que querem ficar a sós com o seu riso



A Metamorfose


Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos..... leiam o livro.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

HUGO MÃE- POETA E ESCRITOR


Nasceu em Angola, Saurimo, em 1971. Passou a infância em Paços de Ferreira, vive em Vila de Conde desde 1981. Licenciado em Direito, pós-graduado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea. Autor do romance o apocalipse dos trabalhadores, Quidnoví, 2008, um dos romances de maior impacto crítico no corrente ano em Portugal.

Vencedor do Prêmio José Saramago de romance, 2006.

Livros de poesia: bruno (2007), pornografia erudita (2007), livro de maldições (2006), o resto da minha alegria seguido de a remoção das almas (2003), útero (2003) , a cobrição das filhas (2001) e três minutos antes de a maré encher (2000). No Brasil saíram seus poemas reunidos em: mil e setenta e um poemas (Thesaurus, 2008).


Estou escondido na cor amarga do fim da tarde

estou escondido na cor amarga do
fim da tarde. sou castanho e verde no
campo onde um pássaro
caiu. sinto a terra e orgulho
por ter enlouquecido. produzo o corpo
por dentro e sou igual ao que
vejo. suspiro e levanto vento nas
folhas e frio e eco. peço às nuvens
para crescer. passe o sol por cima
dos meus olhos no momento em que o
outono segue à roda do meu tronco e, assim
que me sinta queimado, leve-me o
sol as cores e reste apenas o odor
intenso e o suave jeito dos ninhos ao
relento

Agora eu era linda outra vez


Agora eu era linda outra vez
e tu existias e merecíamos
noite inteira um tão grande
amor

agora tu eras como o tempo
despido dos dias, por fim
vulnerável e nu, e eu
era por ti adentro eternamente

lentamente
como só lentamente
se deve morrer de amor


CARTA DE VALTER HUGO MÃE LIDA POR ELE NA FLIIP/2011- A PRIMEIRA LEMBRANÇA DO BRASIL


"Quando eu tinha 8 anos veio morar para a casa ao lado da dos meus pais um casal de brasileiros com duas filhas moças. Ao chegar, o casal ofereceu uma ambulância ao quartel de bombeiros da nossa vila e toda a vila se emocionou. Foram os primeiros brasileiros que eu vi fora da tv, fora das novelas. Eu e os meus amigos fomos ao quartel dos bombeiros apreciar a ambulância nova, bem pintada, que se mostrava a todos como prova bonita da bondade de alguém. O meu pai tinha um carro pequeno, velho, difícil de levar a família inteira dentro. A ambulância era enorme, um luxo, como se fosse para transportar doentes felizes. Eu e os meus amigos ficamos estupefactamente felizes.

Depois, algumas mulheres e alguns homens mais delicados reuniam-se diante da senhora e das moças brasileiras e faziam perguntas sobre as novelas. Naquele tempo, passavam com muito atraso em relação ao Brasil, e todos queriam saber avidamente quem casava com quem na Gabriela.

A senhora e as suas duas filhas, porque sabiam o que ia acontecer nas novelas, eram aos olhos de todos como adivinhas, gente que via coisas do futuro, gente que viveu o futuro e que se juntou a nós para reviver o passado. Por causa disto, eram mágicas e as pessoas queriam a opinião delas para cada decisão.

A minha mãe pediu à nova vizinha a receita para fazer pizza, porque ainda não havia pizzarias e só víamos nas revistas como deviam ser bonitos e saborosos aqueles círculos de pão e queijo coloridos pousados nas mesas. Passámos a comer uma pizza de atum com muitas azeitonas pretas. Ainda hoje peço nos restaurantes pizza de atum com a esperança de que seja exactamente igual à da minha infância, mas nunca é.

As moças brasileiras eram mais velhas do que eu e ficaram amigas das minhas irmãs. As minhas irmãs saíam com elas à rua inchadas de orgulho, porque as pessoas todas, sempre comovidas com a ambulância, fazia vénia e sorriam. Havia gente que dizia que as moças brasileiras eram as mais belas de todas. Elas eram, na verdade, sorridentes, e eu senti que também seriam muito felizes na nossa pequena vila.

Um dia a minha imã mais velha fez anos e foi festejá-los com uma festa na garagem das brasileiras. Na noite desse dia, ali pelas oito horas, uma outra menina, filha de um vizinho português, mostrou-me tudo. Não foi a primeira vez, mas eu queria sempre ver, embora ela não quisesse sempre mostrar. Um amigo meu surpreendeu-nos e quis ver também, mas a menina respondeu que não. Ela disse que mostrava apenas a mim porque eu era amigo das brasileiras. Entendi que as brasileiras eram como um toque de Midas que me transformava num menino de ouro.

Aos dezoito, aquele que é o meu amigo mais irmão chegou do Brasil e ingressou na minha escola. Eu instintivamente corri atrás dele. Queria ser amigo dele como se fosse vital para mim. Ele mostrou-me Titãs e Legião Urbana. Eu achava que o Renato Russo ia salvar a minha vida com aquela canção do Tempo perdido. Quando o Renato Russo morreu, chorei muito e passei só a chorar quando ouço o Tempo perdido. Eu não sei se a arte nos deve salvar, mas tenho a certeza de que pode conduzir ao melhor que há em nós, para que não nos desperdicemos na vida.

O Alexandre, esse meu amigo brasileiro, mudou tudo em mim para melhor. Adorava viajar de comboio com ele quando entalávamos as meias mal cheirosas nas janelas para que arejassem durante a marcha. Nesse tempo, o Alexandre ensinou-me a perder aquela vergonha que só atrapalha. Porque os portugueses sempre foram meio envergonhados.

Hoje, temos quase quarenta anos, ele casou com uma portuguesa e tem filhos. Eu, não. Fiquei para tio a escrever romances, e os romances tornaram-se fundamentais na minha vida, como a máquina de fazer espanhóis. Sonhei sempre em vir ao Brasil e vim várias vezes, faltava vir como escritor, publicado e recebido. Pois aqui estou, a Flip fez isso, não esquecerei nunca, sinto que fazem de mim um homem de ouro, agradeço a todos muito por isso."

- valter hugo mãe, 8 de julho de 2011, Flip

Regina Duarte escolhe Valter Hugo Mãe - SIC NOTICIAS

domingo, 3 de julho de 2011

LYGIA FAGUNDES TELLES- O ENCONTRO


Contista e romancista, Lygia Fagundes Telles nasceu em São Paulo, mas passou a infância em pequenas cidades no interior do Estado, onde o pai, o advogado Durval de Azevedo Fagundes, foi delegado e promotor público. A mãe, Maria do Rosário (Zazita) era pianista. Algumas das cidades percorridas: Sertãozinho, Areias, Assis, Apiaí e Descalvado. Voltando a residir com a família em São Paulo, formou-se em Direito (Faculdade do Largo de São Fransisco) e cursou ainda a Escola Superior de Educação Física da mesma Universidade. Foi casada com o jurista e ensaísta Goffredo Telles Júnior. Divorciada, casou-se com o crítico de cinema e fundador da Cinemateca Brasileira, Paulo Emílio Salles Gomes. Tem um filho, Goffredo Telles Neto, cineasta.

O ENCONTRO
Em redor, o vasto campo. Mergulhado em névoa branda, o verde era pálido e opaco. Contra o céu, erguiam-se os negros penhascos tão retos que pareciam recortados a faca. Espetado na ponta da pedra mais alta, o sol espiava através de uma nuvem.
“Onde, meu Deus?! - perguntava a mim mesma - Onde vi esta mesma paisagem, numa tarde assim igual?” Era a primeira vez que eu pisava naquele lugar. Nas minhas andanças pelas redondezas, jamais fora além do vale. Mas nesse dia, sem nenhum cansaço, transpus a colina e cheguei ao campo. Que calma! E que desolação. Tudo aquilo - disso estava bem certa - era completamente inédito para mim. Mas por que então o quadro se identificava, em todas as minúcias, a uma imagem semelhante lá nas profundezas de minha memória? Voltei-me para o bosque que se estendia à minha direita. Esse bosque eu também já conhecera com sua folhagem cor de brasa dentro de uma névoa dourada. “Já vi tudo isto, já vi... Mas onde? E quando?”
Fui andando em direção aos penhascos. Atravessei o campo. E cheguei à boca do abismo cavado entre as pedras. Um vapor denso subia, como um hálito daquela garganta de cujo fundo insondável, vinha um remotíssimo som de água corrente. Àquele som eu também conhecia. Fechei os olhos. “Mas se nunca estive aqui! Sonhei, foi isso? Percorri em sonho estes lugares e agora os encontro, palpáveis, reais? Por uma dessas extraordinárias coincidências teria eu antecipado aquele passeio enquanto dormia?”
Sacudi a cabeça, não, a lembrança - tão antiga quanto viva - escapava da inconsistência de um simples sonho. Ainda uma vez fixei o olhar no campo enevoado, nos penhascos enxutos. A tarde estava silenciosa e quieta. Contudo, por detrás daquele silêncio, no fundo daquela quietude eu sentia qualquer coisa de sinistro. Voltei-me para o sol que sangrava como um olho empapando de vermelho a nuvenzinha que o cobria. Invadiu-me a obscura sensação de estar próxima de um perigo. Mas que perigo era esse e em que consistia?
Dirigi-me ao bosque. E se fugisse? Seria fácil fugir, não? Meu coração se apertou, inquieto. Fácil, sem dúvida, mas eu prosseguia implacável como se não restasse mesmo outra coisa a fazer senão avançar. “Vá-se embora depressa, depressa!” - a razão ordenava enquanto uma parte do meu ser, mergulhada numa espécie de encantamento, se recusava a voltar.
Uma luz dourada filtrava-se por entre a folhagem do bosque que parecia petrificado. Não havia a menor brisa soprando por entre as folhas enrijecidas, numa tensão de expectativa.
“A expectativa está só em mim” - pensei, triturando entre os dedos uma folha avermelhada. Veio-me então a certeza absoluta de já ter feito várias vezes esse gesto enquanto pisava naquele -mesmo chão que arfava sob os meus
sapatos. Enveredei por entre as árvores. - “E nunca estive aqui, nunca estive aqui” - fui repetindo a aspirar o cheiro frio da terra. Encostei-me a um tronco e por entre uma nesga da folhagem vislumbrei o céu pálido. Era como se o visse pela última vez.
“A cilada” - pensei diante de uma teia que brilhava suspensa entre dois galhos. No centro, a aranha. Aproximei-me: era uma aranha ruiva e atenta, à espera. Sacudi violentamente o galho e desfiz a teia que pendeu em farrapos. Olhei em redor, assombrada. E a teia para a qual eu caminhava, quem? quem iria desfaze-la? Lembrei-me do sol, lúcido como a aranha. Então enfurnei as mãos nos bolsos, endureci os maxilares e segui pela vereda.
“Agora vou encontrar uma pedra fendida ao meio.” E cheguei a rir, entretida com aquele estranho jogo de reconhecimento: lá estava a grande pedra golpeada, com tufos de erva brotando na raiz da fenda. “Se for agora por este lado, vou encontrar um regato.” Apressei-me. O regato estava seco mas os pedregulhos limosos indicavam que provavelmente na próxima primavera a água voltaria a correr por ali.
Apanhei um pedregulho. Não, não estava sonhando. Nem podia ter sonhado, mas em que sonho podia caber uma paisagem tão minuciosa? Restava ainda uma hipótese: e se eu estivesse sendo sonhada? Perambulava pelo sonho de alguém, mais real do que se estivesse vivendo. Por que não? Daí o fato estranhíssimo de reconhecer todos os segredos do bosque, segredos que eram apenas do conhecimento da pessoa que me captara em seu sonho. “Faço parte de um sonho alheio” - disse e espetei um espinho no dedo. Gracejava mas a verdade é que crescia minha inquietação: “se for prisioneira de um sonho, agora escapo.” Uma gota de sangue escorreu pela minha mão, a dor tão real quanto a paisagem.
Um pássaro cruzou meu caminho num vôo tumultuado. O grito que soltou foi tão dolorido que cheguei a vacilar num desfalecimento, e se fugisse? E se fugisse? Voltei-me para o caminho percorrido, labirinto sem - esperança. “Agora é tarde!” - murmurei e minha voz avivou em mim um último impulso de fuga. “Por que tarde?”
A folha que resvalou pela minha cabeça era a seca advertência que colhi no ar e fechei na mão, que eu não buscasse esclarecer o mistério, que não pedisse explicações para o absurdo daquela tarde tão inocente na sua aparência. Tinha apenas que aceitar o inexplicável até que o nó se desatasse, na hora exata.
Enveredei por entre dois carvalhos. Ia de cabeça baixa, o coração pesado mas as passadas eram enérgicas, impelida por uma energia que não sabia de onde vinha. “Agora vou encontrar uma fonte. Sentada ao lado, está uma moça.”
Ao lado da fonte, estava a moça vestida com um estranho traje de amazona. Tinha no rosto muito branco uma expressão tão ansiosa que era evidente estar à espera de alguém. Ao ouvir meus passos, animou-se para cair em seguida no maior desalento.
Aproximei-me. Ela lançou-me um olhar desinteressado e cruzou as mãos no, regaço. - Pensei que fosse outra pessoa, estou esperando uma pessoa... Sentei-me numa pedra verde de musgo, olhando em silêncio seu traje completamente antiquado: vestia uma jaqueta de veludo preto e uma extravagante saia rodada que lhe chegava até a ponta das botinhas de amarrar. Emergindo da gola alta da jaqueta destacava-se a gravata de renda branca, presa com um broche de ouro em forma de bandolim. Atirado no chão, aos seus pés, o chapéu de veludo com uma pluma vermelha.
Fixei-me naquela fisionomia devastada. “Já vi esta moça, mas onde foi? E quando?...” Dirigi-me a ela sem o menor constrangimento, como se a conhecesse há muitos anos.
- Você mora aqui perto? - Em Valburgo - respondeu sem levantar a cabeça. Mergulhara tão profundamente nos próprios pensamentos, que parecia desligada de tudo, aceitando minha presença sem nenhuma surpresa, não notando sequer o disparatado contraste de nossas roupas. Devia ter chorado. E agora ali estava numa patética exaustão, as mãos abandonadas no regaço, alguns anéis de cabelo caindo pelo rosto. Nunca criatura alguma me pareceu tão desesperada, tão tranqüilamente desesperada, se é que cabia tranqüilidade no desespero. Perdera toda a esperança e decidira resignar-se. Mas sentia-se a fragilidade naquela resignação.
- Valburgo, Valburgo... - fiquei repetindo. O nome não me era desconhecido. E não me lembrava de nenhum lugar com esse nome em toda aquela região.
- Fica logo depois do vale. Não conhece Valburgo? - Conheço - respondi prontamente. Tinha agora a certeza de que esse lugar não existia mais. Com um gesto indiferente, ela tentou prender o cabelo que desabava do penteado alto. Afrouxou ansiosamente o laço da gravata, como se lhe faltasse o ar. O bandolim de ouro pendeu, repuxando a renda. “Esse broche... Mas já não vi esse mesmo broche nessa mesma gravata?!”
- Eu esperava uma pessoa - disse com esforço, voltando o olhar dolorido para o cavalo preso a um tronco. - Gustavo? Esse nome escapou-me com tamanha espontaneidade que me assustei, era como se estivesse sempre em minha boca, aguardando aquele instante para ser dito.
- Gustavo - repetiu ela e sua voz era um eco. Gustavo. Encarei-a. Mas por que ele não tinha vindo? “E nem virá, nunca mais. Nunca mais.” Fixei obstinadamente o olhar naquela desconcertante personagem de um antiquíssimo álbum de retratos. Álbum que eu já folheara muitas vezes, muitas. Pressentia agora um drama com cenas entremeadas de discussões tão violentas, lágrimas. A cena esboçou-se esfamadamente nas minhas raízes, cena que culminou naquela noite das vozes. exasperadas. De homens. De inimigos. Alguém fechou as janelas da pequena sala frouxamente iluminada por um candelabro. Procurei distinguir o que diziam quando através da vidraça embaçada vi delinear-se a figura de um velho magro, de sobrecasaca preta, batendo furiosamente a mão espalmada na mesa enquanto parecia dirigir-se a uma máscara de cera que flutuava na penumbra.
Moveu-se a máscara entrando na zona de luz. Gustavo! Era Gustavo. A mão do velho continuou batendo na mesa e eu não podia me despregar dessa mão tão familiar com suas veias azuis se enroscando umas nas outras numa rede de fúria. Nos punhos de renda de sua camisa destacavam-se com uma nitidez atrozos rubis de suas abotoaduras. Um dos homens avançou. Foi Gustavo? Ou o velho? A garrucha avançou também e a cena explodiu em, meio de um clarão. Antes do negrume total vi por último as -abotoaduras brilhando irregulares como gotas de sangue.
Senti o coração confranger-se de espanto, “quem foi que atirou, quem foi?!” Apertei os nós dos dedos contra os olhos. -Era quase insuportável a violência com que o sangue me golpeava as fontes.
- Você devia voltar para casa. - Que casa? - perguntou ela abrindo as mãos. Olhei para suas mãos. Subi o olhar até seu rosto e fiquei sem saber o que dizer: era parecidíssima com alguém que eu conhecia tanto. - Por que não vai procurá-lo? - lembrei-me de perguntar. Mas não esperei resposta. A verdade é que ela também suspeitava de que estava tudo acabado. Escurecia. Uma névoa roxa - e que eu não sabia se vinha do céu ou do chão - parecia envolvê-la numa aura. Achei-a impregnada da mesma falsa calmaria da paisagem.

- Vou-me embora - disse apanhando o chapéu. Sua voz chegou-me aos ouvidos bastante próxima. Mas singularmente longínqua. Levantei-me. Nesse instante, soprou um vento gelado com tamanha força que me vi enrolada numa verdadeira nuvem de folhas secas e poeira. A ramaria vergou num descabelamento desatinado. Verguei também tapando a cara com as mãos. Quando consegui abrir os olhos ela já estava montada. O mesmo vento que despertara o bosque, com igual violência arrancou-a daquela apatia: palpitava em cima do cavalo tão elétrico quanto as folhas vermelhas rodopiando em redor. Espicaçado, o animal batia com os cascos nos pedregulhos, desgrenhado, indócil. Quis retê-la..
- Há ainda uma coisa! Ela então voltou-se para mim. A pluma vermelha de seu chapéu debatia- se como uma labareda em meio da ventania. Seus olhos eram agora dois furos na face de um tom acinzentado de pedra.
- Há ainda uma coisa - repeti agarrando as rédeas do cavalo. Ela arrancou as rédeas das minhas mãos e chicoteou o cavalo. Recuei. Aquela chicotada atingiu em cheio o mistério. Desatou-se o nó na explosão da tempestade. Meus cabelos se eriçaram. Era comigo que ela se parecia! Aquele rosto era o meu.
- Eu fui você - balbuciei. - Num outro tempo eu fui você! - quis gritar e minha voz saiu despedaçada. Tão simples tudo, por que só agora entendi?... O bosque, a aranha, o bandolim de ouro pendendo da gravata, a pluma do chapéu, aquela pluma que minhas mãos tantas vezes alisaram... E Gustavo? Estremeci. Gustavo! A saleta esfumaçada, se fez nítida. Lembrei-me do que tinha acontecido. E do que ia acontecer.
- Não! - gritei, puxando de novo as rédeas. Um raio chicoteou o bosque com a mesma força com que ela chicoteou o cavalo. Ele empinou, imenso,
negro, os olhos saltados, arrancando-se das minhas mãos. Estatelada, vi-o fugir por entre as árvores. Fui atrás. O vento me cegava. Espinhos me esfrangalhavam a roupa. Mas eu corria, corria alucinadamente na tentativa de impedir o que já sabia inevitável. Guiava-me a pluma vermelha que ora desaparecia, ora ressurgia por entre as árvores, flamejante na escuridão. Por duas vezes senti o cavalo tão próximo que poderia tocá-lo se estendesse a mão. Depois o galope foi se apagando até ficar apenas o uivo do vento.
Assim que atingi o campo, desabei de joelhos. Um relâmpago estourou e por um segundo, por um brevíssimo segundo, consegui vislumbar ao longe a pluma debatendo-se ainda. Então gritei, gritei com todas as forças que me restavam. E tapei os ouvidos para não ouvir o eco de meu grito misturar-se ao ruído pedregoso de cavalo e cavaleira se despencando no abismo.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

VOLTAIRE-A DEPENDÊNCIA É A RAIZ DE TODOS OS MALES

Não quero participar da política... A política não é o meu ofício; sempre me limitei a fazer pequeninos esforços para tornar os homens menos tolos e mais honestos.

Voltaire era o pseudônimo de François-Marie Arouet. Foi um importante ensaísta, escritor e filósofo iluminista francês. Nasceu na cidade de Paris, em 21 de novembro de 1694 e morreu, na mesma cidade, em 30 de novembro de 1778. Durante sua vida escreveu diversos ensaios, romances, poemas e até peças de teatro. Voltaire foi um burguês que se opôs à intolerância religiosa, intolerância de opinião etc. existente na Europa no período em que viveu. Trata-se de idéias extremamente revolucionárias, que acabaram por fazer com que Voltaire fosse exilado de seu país de origem, a França. Além de apoiar a liberdade de expressão, Voltaire também defendia a criação de leis para todos da população.

"O que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo? Nada. Nenhum animal depende do seu semelhante. Tendo porém o homem recebido o raio da Divindade a que se chama razão, qual foi o resultado? Ser escravo em quase toda a terra. Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se em toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado à sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o mundo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos gansos e cabras monteses, não teriam os Gengis Cãs e Tamerlões vassalos senão os próprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxiliá-los na velhice.
No estado natural de que gozam os quadrúpedes, aves e répteis, tão feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguém pensaria: para quê servidores se não tivésseis necessidade de nenhum serviço? Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter o seu vizinho menos forte que ele, a coisa seria impossível: antes que o opressor tivesse tomado as suas medidas o oprimido estaria a cem léguas de distância. Todos os homens seriam necessariamente iguais, se não tivessem necessidades. A miséria que avassala a nossa espécie subordina o homem ao homem - o verdadeiro mal não é a desigualdade: é a dependência.

Pouco importa chamar-se tal homem Sua Alteza, tal outro Sua Santidade. Duro porém é um servir o outro. Uma família numerosa cultivou um bom terreno. Duas famílias vizinhas têm campos ingratos e rebeldes: impõe-se-lhes servir ou eliminar a família opulenta. Uma das duas famílias indigentes vai oferecer os seus braços à rica para ter pão. A outra vai atacá-la e é derrotada. A família servente é fonte de criados e operários. A família subjugada é fonte de escravos. Impossível, neste mundo miserável, que a sociedade humana não seja dividida em duas classes, uma de opressores, outra de oprimidos. Essas duas classes subdividem-se em mil outras, essas outras num sem número de cambiantes diferentes. Nem todos os oprimidos são absolutamente desgraçados. A maior parte nasce nesse estado, e o trabalho contínuo impede-os de sentir toda a miséria da sua própria situação. Quando a sentem, porém, são guerras, como a do partido popular contra o partido do senado em Roma, as dos camponeses na Alemanha, Inglaterra, França. Mais cedo ou mais tarde todas essas guerras terminam com a submissão do povo, porque os poderosos têm dinheiro e o dinheiro tudo pode no Estado. Digo no Estado, porque o mesmo não se dá de nação para nação. A nação que melhor se servir do ferro sempre subjugará a que, embora mais rica, tiver menos coragem.

Todo o homem nasce com forte inclinação para o domínio, a riqueza, os prazeres e sobretudo para a indolência. Todo o homem portanto quereria estar de posse do dinheiro e das mulheres ou das filhas dos outros, ser-lhes senhor, sujeitá-los a todos os seus caprichos e nada fazer ou pelo menos só fazer coisas muito agradáveis. Vedes que com estas excelentes disposições é tão difícil aos homens ser iguais quanto a dois pregadores ou professores de teologia não se invejarem. Tal como é, é impossível o género humano subsistir, a menos que haja uma infinidade de homens úteis que nada possuam. Porque, claro é que um homem satisfeito não deixará a sua terra para vir lavrar a vossa. E se tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um referendário que vo-lo fará. Igualdade é pois a coisa mais natural e ao mesmo tempo a mais quimérica.

Como se excedem em tudo que deles dependa, os homens exageraram essa desigualdade. Pretendeu-se em muitos países proibir aos cidadãos sair do lugar em que a ventura os fizera nascer. O sentido dessa lei é visivelmente: este pais é tão mau e tão mal governado que vedamos a todo o indivíduo dele sair, por temor que todos o desertem. Fazei melhor: infundi em todos os vossos súbditos o desejo de permanecer no vosso Estado, e aos estrangeiros o desejo de para aí vir. Nos íntimos refolhos do coração todo o homem tem o direito de crer-se de todo o ponto de vista igual aos outros homens. Daí não segue dever o cozinheiro de um cardeal ordenar ao seu senhor que lhe faça o jantar; pode todavia dizer: "Sou tão homem como o meu amo; nasci como ele a chorar; como eu ele morrerá nas mesmas angústias e com as mesmas cerimónias. Temos ambos as mesmas funções animais. Se os turcos se apoderarem de Roma e eu me tornar cardeal e o meu senhor cozinheiro, tomá-lo-ei a meu serviço". Tudo isso é razoável e justo. Mas, enquanto o grão turco não se assenhorear de Roma, o cozinheiro precisa de cumprir as suas obrigações, ou toda a humanidade se perverteria.
Um homem que não seja cozinheiro de cardeal nem ocupe nenhum cargo no Estado; um particular que nada tenha de seu mas a quem repugne o ser em toda a parte recebido com ar de proteção ou desprezo; um homem que veja que muitos monsignori não têm mais ciência, nem mais espírito, nem mais virtude que ele, e que se enfade de esperar nas suas antecâmaras, que partido deve tomar? O da morte".

Voltaire, in 'Dicionário Filosófico'

sábado, 11 de junho de 2011

CECÍLIA MEIRELES-POETA BRASILEIRA


Retrato

"Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?"





AQUELE QUE APROXIMA OS QUE SEMPRE ESTARÃO
Cecília Meireles

Aquele que aproxima os que sempre estarão
distantes e desunidos
e separa os que pareceriam
para sempre unidos e semelhantes
enxuga meus olhos
no alto da noite de mil direções.
Encostada a seu peito,
contemplo desfigurada
o negro curso da vida
como, um dia,
do alto de uma fortaleza
vi a solidão das pedras milenares
que desciam por suas arruinadas vertentes.

(Poesias Completas de Cecília Meireles)


O Amor...

É difícil para os indecisos.
É assustador para os medrosos.
Avassalador para os apaixonados!
Mas, os vencedores no amor são os
fortes.
Os que sabem o que querem e querem o que têm!
Sonhar um sonho a dois,
e nunca desistir da busca de ser feliz,
é para poucos!!


LUA ADVERSA

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...



Despedida


Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)
Quero solidão.

domingo, 15 de maio de 2011

FERNANDO PESSOA


Poesia Felicidade


Não se acostume com o que não o faz feliz, revolte-se quando julgar necessário.
Alague seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas.
Se achar que precisa voltar, volte!
Se perceber que precisa seguir, siga!
Se estiver tudo errado, comece novamente.
Se estiver tudo certo, continue.
Se sentir saudades, mate-a.
Se perder um amor, não se perca!
Se o achar, segure-o!


Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver
Apesar de todos os desafios,
Incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas
E se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si,
Mas ser capaz de encontrar um oásis
No recôndito da sua alma.
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um “não”.
É ter segurança para receber uma crítica,
Mesmo que injusta.



Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou
Construir um castelo ...


Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já não me dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.


Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.


Alberto Caeiro
Acho tão Natural que não se Pense

Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa
Que tem que ver com haver gente que pensa ...
Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me cousas. . .
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé dormente. . .

Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que a tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas cousas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos ...
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.



Ah, a Esta Alma Que Não Arde


AH, A ESTA alma que não arde
Não envolve, porque ama,
A esperança, ainda que vã,
O esquecimento que vive
Entre o orvalho da tarde
E o orvalho da manhã.


Breve o Dia



Breve o dia, breve o ano, breve tudo.

Não tarda nada sermos.

Isto, pensado, me de a mente absorve

Todos mais pensamentos.

O mesmo breve ser da mágoa pesa-me,

Que, inda que mágoa, é vida.




Fresta

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado

Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.

terça-feira, 26 de abril de 2011

FLORBELA ESPANCA




Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada… a dolorida…

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!…

Sou aquela que passa e ninguém vê…
Sou a que chamam triste sem o ser…
Sou a que chora sem saber porquê…

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!






“Não se pode chegar aos astros quem leva vida de rastros, quem é poeira do chão.” - Florbela Espanca


Lágrimas Ocultas


Se me ponho a cismar em outras eras
Em que rí e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi outras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!



Fanatismo


Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver
Pois que tu és já toda a minha vida!


E, olhos postos em ti, digo de rastros:
«Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...»

domingo, 24 de abril de 2011

ELIZABETH BISHOP- A ARTE DE PERDER/CADELA ROSADA


One Art

The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

-Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.



Tradução de Paulo Henriques Britto

“A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério. “




CADELA ROSADA

[Rio de Janeiro]

Sol forte, céu azul. O Rio sua.
Praia apinhada de barracas. Nua,
passo apressado, você cruza a rua.

Nunca vi um cão tão nu, tão sem nada,
sem pêlo, pele tão avermelhada...
Quem a vê até troca de calçada.

Têm medo da raiva. Mas isso não
é hidrofobia — é sarna. O olhar é são
e esperto. E os seus filhotes, onde estão?

(Tetas cheias de leite.) Em que favela
você os escondeu, em que ruela,
pra viver sua vida de cadela?

Você não sabia? Deu no jornal:
pra resolver o problema social,
estão jogando os mendigos num canal.

E não são só pedintes os lançados
no rio da Guarda: idiotas, aleijados,
vagabundos, alcoólatras, drogados.

Se fazem isso com gente, os estúpidos,
com pernetas ou bípedes, sem escrúpulos,
o que não fariam com um quadrúpede?

A piada mais contada hoje em dia
é que os mendigos, em vez de comida,
andam comprando bóias salva-vidas.

Você, no estado em que está, com esses peitos,
jogada no rio, afundava feito
parafuso. Falando sério, o jeito

mesmo é vestir alguma fantasia.
Não dá pra você ficar por aí à
toa com essa cara. Você devia

pôr uma máscara qualquer. Que tal?
Até a quarta-feira, é Carnaval!
Dance um samba! Abaixo o baixo-astral!

Dizem que o Carnaval está acabando,
culpa do rádio, dos americanos...
Dizem a mesma bobagem todo ano.

O Carnaval está cada vez melhor!
Agora, um cão pelado é mesmo um horror...
Vamos, se fantasie! A-lá-lá-ô...!

1979


PINK DOG

[Rio de Janeiro]

The sun is blazing and the sky is blue.
Umbrellas clothe the beach in every hue.
Naked, you trot across the avenue.

Oh, never have I seen a dog so bare!
Naked and pink, without a single hair...
Startled, the passersby draw back and stare.

Of course they're mortally afraid of rabies.
You are not mad; you have a case of scabies
but look intelligent. Where are your babies?

(A nursing mother, by those hanging teats.)
In what slum have you hidden them, poor bitch,
while you go begging, living by your wits?

Didn't you know? It's been in all the papers,
to solve this problem, how they deal with beggars?
They take and throw them in the tidal rivers.

Yes, idiots, paralytics, parasites
go bobbing int the ebbing sewage, nights
out in the suburbs, where there are no lights.

If they do this to anyone who begs,
drugged, drunk, or sober, with or without legs,
what would they do to sick, four-legged dogs?

In the cafés and on the sidewalk corners
the joke is going round that all the beggars
who can afford them now wear life preservers.

In your condition you would not be able
even to float, much less to dog-paddle.
Now look, the practical, the sensible

solution is to wear a fantasía.
Tonight you simply can't afford to be a-
n eyesore... But no one will ever see a

dog in máscara this time of year.
Ash Wednesday'll come but Carnival is here.
What sambas can you dance? What will you wear?

They say that Carnival's degenerating
— radios, Americans, or something,
have ruined it completely. They're just talking.

Carnival is always wonderful!
A depilated dog would not look well.
Dress up! Dress up and dance at Carnival!

1979

quarta-feira, 6 de abril de 2011

TARDES POÉTICAS NAS ESCOLAS


A ZL COMUNICAÇÃO APRESENTA O PROJETO : TARDES POÉTICAS



APRESENTAÇÃO


A poesia é um meio privilegiado para despertar o amor pela nossa língua, nossa cultura. A rima, o ritmo e a sonoridade, permitem uma descoberta progressiva das potencialidades da linguagem escrita. Essa descoberta, tão decisiva para a formação do indivíduo, adquire assim um carácter lúdico. Brincar com os sons, descobrir novas ressonâncias, ouvir e ler pequenas histórias em verso, memorizar os poemas preferidos, desvendar imagens e sentimentos contidos na palavra, são atividades de adesão imediata que podem e devem ser introduzidas no universo infantil antes da alfabetização, pois constituem uma excelente forma de preparação para aprendizagem da leitura e da escrita.

A poesia deve ser feita por todos. Entendemos que a arte poética não deve ser um dom para ser fruído apenas por alguns, mas sim uma dádiva para todos. A poesia é a arte mais democrática que o homem conseguiu criar.

Para nos dispormos a enfrentá-la com propostas efetivas é preciso acreditar que a poesia é essencial à vida. Que o acesso a ela é um direito de toda criança e todo jovem. Se a criança ou o jovem vai, depois, se tornar um leitor de poesia não temos como afirmar, mas temos o dever de levá-lo a ter contato com uma poesia em que estejam representados seus desejos, dúvidas, medos, alegrias, enfim, sua experiência de vida. Mas, também, proporcionar-lhe leituras desafiadoras que possam questionar posições, preconceitos e a colaborar para que se tornem leitores mais exigentes.

É preciso também estar atento ao modo como se dará o encontro do jovem leitor com o poema. O conhecimento das expectativas do leitor e de textos que estão em sintonia com essas expectativas não é suficiente. Inúmeras vezes encontra- mos alunos e alunas que resistem a poemas de Drummond, de Cecília Meireles,de Manuel Bandeira. Temos a consciência de que se o aluno tem dificuldade de gostar de algo a que poucas vezes teve acesso. E se o teve foi via livro didático, de um modo nem sempre adequado.

JUSTIFICATIVA


De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura, realizada em 2007 pelo Instituto Pró-Livro para a CBL, o Sindicato Nacional dos Editores de Livros e a Associação Brasileira de Livros, 95,6 milhões de brasileiros (cerca de 55% do total) declararam ter lido um livro nos últimos três meses.

A pesquisa mostrou crescimento no número de leitores no Brasil. A média, que era de de 1,8 livro lido por ano por habitante em 2001, passou para para 4,7 livros por habitante/ano.

O faturamento do mercado editorial brasileiro cresceu 6,56% em 2008 ante 2007, com aumento de 5,64% no número de exemplares vendidos. Foram obtidos R$ 2,43 bilhões com a venda de 211,5 milhões de exemplares. Em 2008, somando as vendas do mercado e do governo, o aumento do faturamento foi de 9,71% Descontada a inflação, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), a expansão do faturamento no ano passado atingiu 4,9%.

Para garantir que o livro não saia da vida do brasileiro após a fase escolar, esse projeto pretende incentivar a leitura através da poesia.



OBJETIVO

Nosso objetivo é apontar perspectivas de abordagem do poema para leitores jovens, resgata-los das ruas, e sobretudo, fortalecer a auto-estima. Encorajar aos participantes a escreverem seus sentimentos, suas vitórias e esperanças.

Aprendemos que quando escrevemos sobre nós, estamos aprendendo a nos conhecer melhor.

O caminho que nos parece mais promissor, embora mais difícil, devido à pouca prática de leitura de poemas, é o da busca, na obra de nossos grandes poetas, de poemas que respondam ao horizonte de expectativa do leitor jovem. O jovem precisa ser incluído nesse processo.

Se a leitura em nosso país é desprestigiada, não poderia ser diferente com a poesia. As razões são muitas. Vou abordar algumas delas: em primeiro lugar, muitos adultos, recomendam mas não gostam de ler.

Em segundo, creio que se criou uma cultura de aparências no seio de uma certa elite que adora sentir-se "intelectual", "culta", "moderna" e "de vanguarda". Num país enraizado na cultura oral e popular - desprezada e desconhecida - é comum que essa elite se sinta "superior", só porque estudou um pouco. Nesse contexto, algumas vezes, surge uma literatura elitista, hermética e especializada, escrita para raros iniciados - literatura que afasta o leitor, mesmo aquele de nível universitário, mas sem formação em literatura. Impotentes, muitas pessoas chegam à conclusão de que "não têm jeito para a leitura". Naturalmente, isso tem reflexo negativo se pensarmos no leitor jovem que está se formando.

E por último, somos formados pelo discurso escolarizado, predominante no livro didático.

PÚBLICO ALVO: Alunos do Ensino Fundamental e Médio. O Projeto, também, favorece pessoas da comunidade, do bairro, da cidade.... A poesia é para todos.

Contatos: zlcomunicacao8@gmail.com / jo.hramos@gmail.com
Jô A. Ramos

domingo, 20 de março de 2011

HEINRICH HEINE- POETA ALEMÃO


1797: Nasce o poeta alemão Heinrich Heine do século 19. Ele tornou-se célebre pela afirmação profética "Onde livros são queimados, seres humanos estão destinados a serem queimados também".

Heine abraçou as causas mais candentes de seu tempo, em particular o combate ao racismo.

"Ich hätte mir als lyrischer Dichter Ruhm erwerben können...und Deutschland hätte mich geliebt, als satirischer hätte es mich gefürchtet, als Polemiker hätte es auf mich gehört und mich gehasst! Nun bin ich aber, Gott sei’s geklagt, so ziemlich Alles gewesen, und Niemand weiss mich zu classifizieren".

"Eu poderia ter conquistado fama como poeta lírico...e a Alemanha teria me amado; como sátiro, teria me temido; como polêmico teria me ouvido com atenção e me odiado! Mas, seja por culpa de Deus, eu me transformei em um pouco de cada coisa, e ninguém sabe como me classificar"

Boa parte de sua poesia lírica, especialmente a sua obra de juventude, foi musicada por vários compositores notáveis como Robert Schumann, Franz Schubert, Felix Mendelssohn, Brahms, Hugo Wolf, Richard Wagner e, já no século XX, por Hans Werner Henze e Lord Berners.

Um poema de Heine

Vem, linda peixeirinha,
Trégua aos anzóis e aos remos.
Senta-te aqui comigo,
Mãos dadas conversemos.

Inclina a cabecinha
E não temas assim:
Não te fias do oceano?
Pois fia-te de mim.

Minh’alma, como o oceano,
Tem tufões, correntezas,
E muitas lindas pérolas
Jazem nas profundezas.

Heinrich Heine
(tradução de Manuel Bandeira)


"An Edom!" / "A Edom!": tradução de André Vallias


A Edom!*

Há dois milênios já perdura
A convivência tão fraterna –
Quando eu respiro, tu me aturas,
Se te enraiveces, eu tolero.

Algumas vezes, convenhamos,
Cruzaste as raias do mau gosto,
As santas unhas mergulhando
Na tinta rubra do meu corpo!

Nossa amizade agora cresce
A cada dia e nunca para;
Virei alguém que se enraivece,
Estou ficando a tua cara.



An Edom!*

Ein Jahrtausend schon und länger,
Dulden wir uns brüderlich,
Du, du duldest, daß ich atme,
Dass du rasest, dulde Ich.

Manchmal nur, in dunkeln Zeiten,
Ward dir wunderlich zu Mut,
Und die liebefrommen Tätzchen
Färbtest du mit meinem Blut!

Jetzt wird unsre Freundschaft fester,
Und noch täglich nimmt sie zu;
Denn ich selbst begann zu rasen,
Und ich werde fast wie Du.

[1824]


Que mundo grosso

Que mundo grosso, gente avara,
– E mais e mais sem mais sabor!
Diz de você... o quê, amor?
Que não tem vergonha na cara.

Mundinho avaro, mundo cego,
Sempre disposto a julgar mal.
Seu beijo doce é meu apego,
Sem falar na ardência final.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

LYA LUFT - CANÇÃO NA PLENITUDE


Canção na plenitude

Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)

O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.

“A vida é maravilhosa, mesmo quando dolorida. Eu gostaria que na correria da época atual a gente pudesse se permitir, criar, uma pequena ilha de contemplação, de autocontemplação, de onde se pudesse ver melhor todas as coisas: com mais generosidade, mais otimismo, mais respeito, mais silêncio, mais prazer. Mais senso da própria dignidade, não importando idade, dinheiro, cor, posição, crença. Não importando nada.”

“Há gente que, em vez de destruir, constrói; em lugar de invejar, presenteia; em vez de envenenar, embeleza; em lugar de dilacerar, reúne e agrega.”

“Apesar das minhas fragilidades, avanço.”

“Pois viver deveria ser - até o último pensamento e derradeiro olhar - transformar-se.”

“As pessoas são responsáveis e inocentes em relação ao que acontece com elas, sendo autoras de boa parte de suas escolhas e omissões.”

“Porque entre o sim e o não é só um sopro, entre o bom e o mau apenas um pensamento, entre a vida e a morte só um leve sacudir de panos - e a poeira do tempo, com todo o tempo que eu perdi, tudo recobre, tudo apaga, tudo torna simples e tão indiferente.”

“Lembro-me de ti
Nesse instante absoluto,
A vida conduzida por um fio de música.
Intenso e delicado, ele vai-nos fechando num casulo
Onde tudo será permitido.
Se é só isso que podemos ter,
Que seja forte. Que seja único.
Tão íntimo quanto ouvirmos a mesma melodia,
Tendo o mesmo - esplêndido - pensamento.”

“Termino o livro e fecho o computador sabendo que por mais que os escritores escrevam, os músicos componham e cantem, os pintores e escultores joguem com formas, cores e luzes -, por mais que o contexto paralelo da arte expresse o profundo contraditório sentimento humano, embora dance à nossa frente e nos convoque até o último fio de lucidez, o essencial não tem nome nem forma: é descoberta e assombro, glória ou danação de cada um"

“Apesar de todos os medos, escolho a ousadia.Apesar dos ferros, construo a dura liberdade.Prefiro a loucura à realidade, e um par de asas tortas aos limites da comprovação e da segurança.Eu, (..........), sou assim.
Pelo menos assim quero fazer: a que explode o ponto e arqueia a linha, e traça o contorno que ela mesma há de romper. A máscara do Arlequim não serve apenas para o proteger quando espreita a vida, mas concede-lhe o espaço de a reinventar.Desculpem, mas preciso lhes dizer: EU quero o delírio.”

“Eu queria solidão, para não ferir aos outros nem ser machucada.”

“Às vezes é preciso recolher-se. O coração não quer obedecer, mas alguma vez aquieta; a ansiedade tem pés ligeiros, mas alguma vez resolve sentar-se à beira dessas águas. Ficamos sem falar, sem pensar, sem agir. É um começo de sabedoria, e dói. Dói controlar o pensamento, dói abafar o sentimento, além de ser doloroso parece pobre, triste e sem sentido. Amar era tão infinitamente melhor; curtir quem hoje se ausenta era tão imensamente mais rico. Não queremos escutar essa lição da vida, amadurecer parece algo sombrio, definitivo e assustador. Mas às vezes aquietar-se e esperar que o amor do outro nos descubra nesta praia isolada é só o que nos resta. Entramos no casulo fabricado com tanta dificuldade, e ficamos quase sem sonhar. Quem nos vê nos julga alheados, quem já não nos escuta pensa que emudecemos para sempre, e a gente mesmo às vezes desconfia de que nunca mais será capaz de nada claro, alegre, feliz. Mas quem nos amou, se talvez nos amar ainda há de saber que se nossa essência é ambigüidade e mutação, este silencio é tanto uma máscara quanto foram, quem sabe, um dia os seus acenos.”

“Lembro-me do passado, não com melancolia ou saudade, mas com a sabedoria da maturidade que me faz projetar no presente aquilo que, sendo belo, não se perdeu.”

“Meu coração se transforma a cada experiência. Mas ainda palpita, sobressalta e se assusta. Ainda é vulnerável como quando eu tinha dez anos.”

“O amor nos tira o sono, nos tira do sério, tira o tapete debaixo dos nossos pés, faz com que nos defrontemos com medos e fraquezas aparentemente superados, mas também com insuspeitada audácia e generosidade. E como habitualmente tem um fim - que é dor - complica a vida. Por outro lado, é um maravilhoso ladrão da nossa arrogância. / Quem nos quiser amar agora terá de vir com calma, terá de vir com jeito. Somos um território mais difícil de invadir, porque levantamos muros, inseguros de nossas forças disfarçamos a fragilidade com altas torres e ares imponentes./ A maturidade me permite olhar com menos ilusões, aceitar com menos sofrimento, entender com mais tranqüilidade, querer com mais doçura./ Às vezes é preciso recolher-se.”


“Não queremos perder, nem deveríamos perder: saúde, pessoas, posição, dignidade ou confiança. Mas perder e ganhar faz parte do nosso processo de humanização.”

“Perder, dói! Não adianta dizer NÃO SOFRA, NÃO CHORE; só não podemos ficar parados no tempo chorando nossa dor diante das nossas perdas.”

“Homens são passos; mulheres são perfumes que se aproximam, param e se esquivam, sem lançar raízes nessa treva. Beijam-se às vezes, como num murmúrio, pra depois, num mundo só de beijos...”

“... acho que a vida é um processo... É como subir uma montanha. Mesmo que no fim não se esteja tão forte fisicamente, a paisagem visualizada é melhor.”

“Um anjo vem todas as noites: senta-se ao pé de mim, e passa sobre meu coração a asa mansa, como se fosse meu melhor amigo. Esse fantasma que chega e me abraça (asas cobrindo a ferida do flanco) é todo o amor que resta entre ti e mim, e está comigo.”

“Se não conheço os mapas, escolho o imprevisto: qualquer sinal é um bom presságio.”

“A quatro mãos escrevemos o roteiro para o palco de meu tempo: o meu destino e eu. Nem sempre estamos afinados, nem sempre nos levamos a sério.”