sábado, 3 de novembro de 2012

AGOSTINHO DA SILVA





Biografia
George Agostinho Baptista da Silva nasceu no Porto em 1906, tendo-se ainda nesse ano mudado para Barca d’Alva (Figueira de Castelo Rodrigo), onde viveu até aos seus 6 anos, regressando depois ao Porto, onde inicia os estudos na Escola Primária de São Nicolau em 1912, ingressando em 1914 na Escola Industrial Mouzinho da Silveira e completando os estudos secundários no Liceu Rodrigues de Freitas, de 1916 a 1924.
Cria o Núcleo Pedagógico Antero de Quental em 1939, e em 1940 publica Iniciação: cadernos de informação cultural. É preso pela polícia política em 1943, abandonando o país no ano seguinte (1944) em direcção à América do Sul, passando pelo Brasil, Uruguai e Argentina, no seguimento da sua oposição ao Estado Novo conduzido por Salazar.
Em 1947 instala-se definitivamente no Brasil, onde viveu até 1969. Em 1948, começa a trabalhar no Instituto Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro, estudando entomologia, e ensinando simultaneamente na Faculdade Fluminense de Filosofia. Colabora com Jaime Cortesão na pesquisa sobre Alexandre de Gusmão. De 1952 a 1954, ensina na Universidade Federal da Paraíba (em João Pessoa (Paraíba) e também em Pernambuco.
Em 1954, novamente com Jaime Cortesão, ajuda a organizar a Exposição do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo. É um dos fundadores da Universidade de Sant Catarina, cria o Centro de Estudos Afro-Orientais, e ensina Filosofia do Teatro na Universidade Federal da Bahia, tornando-se em 1961 assessor para a política externa do presidente Jânio Quadros. Participou na criação da Universidade de Brasília e do seu Centro Brasileiro de Estudos Portugueses no ano de 1962 e, dois anos mais tarde, cria a Casa Paulo Dias Adorno em Cachoeira e idealiza o Museu do Atlântico Sul em Salvador (Bahia).
Regressa a Portugal em 1969, após a doença de Salazar e a sua substituição por Marcello Caetano, que deu origem a alguma abertura política e cultural do regime. Desde aí continuou a escrever e a leccionar em diversas universidades portuguesas, dirigindo o Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Técnica de Lisboa, e no papel de consultor do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, (actual Instituto Camões).

Adoptar uma só máscara? Eu acho que isso não deve ser o ideal. Porque o ideal é ir na corrente do rio, bem alegre, bem divertido com o rio, pronto para ir para todos os lugares aonde ele levar, porque acho que todas as pessoas que têm um ideal, de certo modo estão presas por esse ideal. É que o voto fundamental da pessoa deve ser, de facto, o voto à liberdade.

Claro que é impossível ter por ideal o não ter ideal, é qualquer coisa de impos­sível para nós e é muito bom que o homem saiba, que cada um saiba, que há uma série de coisas, que são efectivamente impossíveis para ele, mas que sabendo que são impossíveis, possa tentar o que é impossível, apenas porque ele é limitado, porque é um reflexo muito ténue, uma centelhazinha muito distante daquilo ou daquele de que ele é imagem.

Digo de propósito daquele ou daquilo, para dizer que dou perfei­tamente como possível que nenhum homem,nenhum pensamento personalize o aquilo, porque talvez personalizar o aquilo é já pô-lo não como nós sermos a ima­gem e criação dele, mas como sendo ele a imagem e criação nossa.

Quando as pes­soas pensam num ser divino que as vigia, que bate num, que premeia outro, etc., estão realmente a transportar-se a si próprias para uma atmosfera divina, para um poder divino que de nenhuma maneira lhes pertence. O que há lá, a tal outra coisa que pode ser tudo, é tão ilimitada, que não pode tomar nenhuma das nossas histó­rias; realmente, pela essência é imprevisível, voa a tudo. Então talvez que o ideal da Humanidade, um ideal muito importante hoje na História, é passarmos do previsí­vel ao imprevisível.

Porque nós estamos a criar e a viver uma civilização desde a primeira Pré-História, uma civilização em que nos parece que temos por ideal o previsível. Hoje a informática e outras coisas semelhantes e todas as tentativas para criar inteligência mecânica, a que tantos homens se dedicam, parecem ser exacta­mente uma maneira de dominar o imprevisível. Então acho que só nos podemos soltar disso, começando a amar, a querer o imprevisível. Porque se o quisermos, estamos na posição de termos ao mesmo tempo um ideal – o imprevisível – e de não ter ideal nenhum, porque ele é imprevisível. 

Agostinho da Silva (1906-1994) Porto, Portugal
In Vida Conversável (1994)



segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O RIO DE JANEIRO GANHA NOVA REVISTA: LAPA LEGAL RIO

O mercado de revistas culturais acaba de ganhar um reforço de peso a Revista Lapa Legal Rio




A Zl Comunicação lançou a Revista Lapa Legal Rio. A publicação será mensal, dirigida ao público do Estado do Rio de Janeiro, e tem como proposta registrar as manifestações culturais do bairro da Lapa e do centro do Rio onde se concentram, hoje, muitos dos melhores restaurantes e bares da cidade, além de galerias, museus, igrejas e construções históricas. Tudo isso perto do coração financeiro da cidade.

Com o início do projeto de revitalização da Zona Portuária, anunciado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, Lapa Legal Rio será uma observadora atenta do processo de transformação do Centro da Cidade e, mais particularmente, dessa região que uma vez recuperada, se integrará ao bairro da Lapa como grande centro artístico, cultural e de lazer da Cidade Maravilhosa. Além disso, vamos cobrir as cidades de todo Estado do Rio.

A Lapa Legal Rio será divulgada em toda a rede hoteleira da cidade, casas de câmbio, agências de viagem, aeroportos etc., como forma de atrair o turismo para as atividades na região. Isso sem falar nos empresários que atuam na área. Uma parte da tiragem será distribuída em bancas de jornal estrategicamente escolhidas no centro da cidade, zona sul e zona norte.

A revista terá agenda cultural, dica gastronômica, teatro, cinema, música, entrevista e personalidades que serão convidadas a escreverem sobre diversos temas.

O objetivo da Lapa Legal Rio é informar, além de divertir e divulgar a cultura brasileira.

Editora: Jô A. Ramos
E-mail: revistalapalegal@gmail.com
Twitter: @RevistaLapa
Facebook:http://www.facebook.com/RevistaLapaLegalRio
Tel: 21 9968-8114

quinta-feira, 12 de julho de 2012

LANÇAMENTO DO LIVRO "VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES. DÊ UM BASTA!"


O livro Violência Contra Mulheres. Dê um Basta! é um grito, um desabafo sobre as estatísticas referentes aos assassinatos de mulheres brasileiras tão banalizados no país. Uma crítica direta às políticas públicas para mulheres. Segundo Jô Ramos, jornalista, fundadora do Movimento Defesa da Mulher e autora do livro- “A violência contra a mulher é uma violação aos direitos humanos e, como tal, merece ser tratada com mais visibilidade-”.


No livro, encontramos endereços de todas as Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher e Casas Abrigo existentes no Brasil, numa tentativa de facilitar o acesso às denuncias de violência. Encontramos, também, um passo a passo de como proceder no caso de agressão, depoimentos de mulheres, entrevista com uma especialista em direitos da mulher, serviços e leis que protegem a vítima e, é claro, a história da Lei Maria da Penha, que mudou o cenário legislativo nacional e representa um avanço no que se refere aos direitos humanos, em especial, na proteção dos direitos das mulheres, mas que não inibiu o aumento dos assassinatos, estupros e agressões no país.

Lançamento: 24 de julho, às 19h, no Bar Cevada, em Copacabana, na Praça Serzedelo Correia 27, esquina com a Rua Siqueira Campos-RJ.

Tels: 55 21 2256-6467/9968-8114

terça-feira, 15 de maio de 2012

TORQUATO NETO







Ai de mim Copacabana



um dia depois do outro

numa casa abandonada

numa avenida

pelas três da madrugada

num barco sem vela aberta

nesse mar

nem mar sem rumo certo

longe de ti

ou bem perto

é indiferente, meu bem



um dia depois do outro

ao teu lado ou sem ninguém

no mês que vem

neste país que me engana

ai de mim, copacabana

ai de mim: quero

voar no concorde

tomar o vento de assalto

numa viagem num salto

(você olha nos meus olhos

e não vê nada -

é assim mesmo

que eu quero ser olhado).



um dia depois do outro

talves no ano passado

é indiferente

minha vida tua vida

meu sonho desesperado

nossos filhos nosso fusca

nossa butique na augusta

o ford galaxie, o medo

de não ter um ford galaxie

o táxi, o bonde a rua

meu amor, é indiferente



minha mãe, teu pai a lua

nesse país que me engana

ai de mim, copacabana

ai de mim, copacabana

ai de mim, copacabana

ai de mim.



O Poeta é a mãe das armas



& das Artes em geral -

alô poetas: poesia

no país do carnaval;

alô, malucos: poesia

não tem nada a ver com os versos

dessa estação muito fria.





O Poeta é a mãe das Artes

& das armas em geral:

quem não inventa as maneiras

do corte no carnaval

(alô malucos), é traidor

da poesia: não vale nada, lodal.





A poesia é o pai das ar-

timanhas de sempre: quent

ura no forno quente

do lado de cá, no lar

das coisas malditíssimas;

alô poetas: poesia!

poesia poesia poesia poesia!

o poeta não se cuida ao ponto

de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo

já sabe: não está cortando nada

além de minha bandeira\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\=

sem aura nem baúra, sem nada mais para contar

isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a

r : em primeiríssimo , o lugar.


poetemos pois

torquato neto/8/11/71/&sempre.



GO BACK




Você me chama

Eu quero ir pro cinema

você reclama

meu coração não contenta

você me ama

mas de repente a madrugada mudou

e certamente

aquele trem já passou

e se passou

passou daqui pra melhor,

foi!



Só quero saber

do que pode dar certo

não tenho tempo a perder



você me pede

quer ir pro cinema

agora é tarde

se nenhuma espécie

de pedido

eu escutar agora

agora é tarde

tempo perdido

mas se você não mora, não morou

é porque não tem ouvido

que agora é tarde

- eu tenho dito -

o nosso amor michou

(que pena) o nosso amor, amor

e eu não estou a fim de ver cinema

(que pena)



rio/agosto/71



sábado, 7 de abril de 2012

ADRIENNE RICH - POETA, ENSAISTA E FEMINISTA


A poeta e ensaísta Adrienne Rich, ícone da literatura feminista, morreu aos 82 anos na terça-feira, 27 de março, em sua casa em Santa Cruz, na Califórnia. De acordo com a família, a autora não resistiu a complicações de uma artrite reumatoide, doença que a acometia há anos.

O jornal New York Times cita que ela vendeu algo em torno de 800 mil exemplares de seus diversos livros de poesia, segundo a W. W. Norton & Company, sua editora desde a década de 1960. "Triplamente marginalizada — como mulher, lésbica e judia —, Rich preocupava-se em tratar, em sua poesia, e em muitos de seus ensaios, de questões de identidade muito antes de o termo ser criado", diz o texto.



Celebrada tanto por suas reflexões sobre sua vida quanto por comentários sociais mordazes, Rich recebeu diversos prêmios, incluindo o Ruth Lilly Poetry Prize e National Book Award, pela obra que abrange sete décadas --e uma das mais reunidas em coleção do século 20. A poeta, que era homossexual assumida e viveu uma era em que a homossexualidade era amplamente condenada na sociedade norte-americana, tornou-se pioneira na luta pelos direitos das mulheres e de outras minorias

"Ela realizou em verso o que Betty Friedan, autora de 'A Mística Feminina', fez na prosa", escreveu Margalit Fox sobre o bardo da pioneira feminista no obituário do The New York Times. O site da Poetry Foundation chamou-a de "uma das principais intelectuais públicas dos EUA".

Adrienne Rich nasceu em Baltimore, em 1929, fruto do relacionamento de uma pianista e de um renomado patologista e professor da John Hopkins. Ela se formou na Radcliff University e se casou com um professor de economia de Harvard, Alfred Conrad, em 1953, com quem teve três filhos. Seu marido morreu em 1970 e seis anos mais tarde ela foi morar junto com sua parceira Michelle Cliff.

Fonte: Folha de São Paulo


O DESERTO COMO JARDIM DO PARAÍSO



Que significaria pensar
que se é parte de uma geração
que tem simplesmente de passar?
Que significaria viver
no deserto, procurar viver
uma vida humana, algo
a transmitir aos filhos
para levar até à terra?
Que significaria pensar
que se nasceu acorrentado e que só o tempo,
nada do que se possa fazer
poder remir a escravidão
em que nasceu?



TEMPO NORTE-AMERICANO

Tudo o que escrevemos
Será usado contra nós
ou contra aqueles que amamos.
São estas as condições,
é pegar ou largar.
A poesia nunca teve hipótese
de se pôr fora da história.
Um verso dactilografado há vinte anos
pode ser escarrapachado a tinta na parede
para glorificar a arte como distanciamento
ou tortura daqueles que
não amamos mas também
não quisemos matar
Nós seguimos mas as nossas palavras ficam
tornam-se responsáveis
por mais do que tínhamos na intenção
e isto é privilégio verbal.

Adrienne Rich
em Uma Paciência Selvagem
Livros Cotovia
Tradução de Maria Ramalho e Mónica Andrade



O SONHO DE UMA LÍNGUA COMUM

Consigo ver-me há anos em Sunion,
doendo-me de um pé infectado, Filoctetes,
em forma de mulher, coxeando o longo caminho,
deitada num promontório sobre o mar escuro,
olhando pelas rochas vermelhas até onde uma espiral silenciosa
de brancura me dizia que uma onda tinha rebentado,
imaginando a força daquela água lá das alturas,
sabendo que suicídio deliberado não era comigo,
mas o tempo todo cuidando, medindo aquela ferida.
Pois bem, tudo isso acabou. A mulher que prezava
o seu sofrimento está morta. Sou a sua descendente.
Amo o tecido cicatrizado que me legou,
mas quero partir daqui contigo
combatendo a tentação de fazer da dor uma carreira.

Adrienne Rich
em Uma Paciência Selvagem
Livros Cotovia
Tradução de Maria Ramalho e Mónica Andrade

quarta-feira, 21 de março de 2012

MÁRIO DE ANDRADE




Eu Sou Trezentos...



Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo


QUANDO EU MORRER

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.



Quarenta Anos



A vida é para mim, está se vendo,
Uma felicidade sem repouso;
Eu nem sei mais se gozo, pois que o gozo
Só pode ser medido em se sofrendo.

Bem sei que tudo é engano, mas sabendo
Disso, persisto em me enganar… Eu ouso
Dizer que a vida foi o bem precioso
Que eu adorei. Foi meu pecado… Horrendo

Seria, agora que a velhice avança,
Que me sinto completo e além da sorte,
Me agarrar a esta vida fementida.

Vou fazer do meu fim minha esperança,
Ôh sono, vem!… Que eu quero amar a morte
Com o mesmo engano com que amei a vida.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

MAMOEL DE BARROS - PAIXÃO PELA PALAVRA




"Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas - é de poesia que estão falando". Manoel de Barros.

Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em Cuiabá (MT) no Beco da Marinha, beira do Rio Cuiabá, em 19 de dezembro de 1916, filho de João Venceslau Barros, capataz com influência naquela região. Mudou-se para Corumbá (MS), onde se fixou de tal forma que chegou a ser considerado corumbaense. Atualmente mora em Campo Grande (MS). É advogado, fazendeiro e poeta.

Com oito anos foi para o colégio interno em Campo Grande, e depois no Rio de Janeiro. Não gostava de estudar até descobrir os livros do padre Antônio Vieira: "A frase para ele era mais importante que a verdade, mais importante que a sua própria fé. O que importava era a estética, o alcance plástico. Foi quando percebi que o poeta não tem compromisso com a verdade, mas com a verossimilhança." Um bom exemplo disso está num verso de Manoel que afirma que "a quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso." E quem pode garantir que não é? "Descobri que servia era pra aquilo: Ter orgasmo com as palavras." Dez anos de internato lhe ensinaram a disciplina e os clássicos a rebeldia da escrita.

Mas o sentido total de liberdade veio com "Une Saison en Enfer" de Arthur Rimbaud (1854-1871), logo que deixou o colégio. Foi quando soube que o poeta podia misturar todos os sentidos. Conheceu pessoas engajadas na política, leu Marx e entrou para a Juventude Comunista. Seu primeiro livro, aos 18 anos, não foi publicado, mas salvou-o da prisão. Havia pichado "Viva o comunismo" numa estátua, e a polícia foi buscá-lo na pensão onde morava. A dona da pensão pediu para não levar o menino, que havia até escrito um livro. O policial pediu para ver, e viu o título: "Nossa Senhora de Minha Escuridão". Deixou o menino e levou a brochura, único exemplar que o poeta perdeu para ganhar a liberdade.

Quando seu líder Luiz Carlos Prestes foi solto, depois de dez anos de prisão, Manoel esperava que ele tomasse uma atitude contra o que os jornais comunistas chamavam de "o governo assassino de Getúlio Vargas." Foi, ansioso, ouvi-lo no Largo do Machado, no Rio. E nunca mais se esqueceu: "Quando escutei o discurso apoiando Getúlio — o mesmo Getúlio que havia entregue sua mulher, Olga Benário, aos nazistas — não agüentei. Sentei na calçada e chorei. Saí andando sem rumo, desconsolado. Rompi definitivamente com o Partido e fui para o Pantanal".

Em Nova York, onde morou um ano,fez curso sobre cinema e sobre pintura no Museu de Arte Moderna. Pintores como Picasso, Chagall, Miró, Van Gogh, Braque reforçavam seu sentido de liberdade. Entendeu então que a arte moderna veio resgatar a diferença, permitindo que "uma árvore não seja mais apenas um retrato fiel da natureza: pode ser fustigada por vendavais ou exuberante como um sorriso de noiva" e percebeu que "os delírios são reais em Guernica, de Picasso". Sua poesia já se alimentava de imagens, de quadros e de filmes. Chaplin o encanta por sua despreocupação com a linearidade. Para Manoel, os poetas da imagem são Federico Fellini, Akira Kurosawa, Luis Buñuel ("no qual as evidências não interessam") e, entre os mais novos, o americano Jim Jarmusch. Até hoje se confessa um "...'vedor' de cinema. Mas numa tela grande, sala escura e gente quieta do meu lado".



A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como
sou - eu não aceito.
Não agüento ser apenas um
sujeito que abre
portas, que puxa válvulas,
que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora,
que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem
usando borboletas.

"No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fundos do quintal :
Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pra dentro".

"...que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc.
Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós".



Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada
de "O Guardador de Águas"



I

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

II
Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.

III
Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.

Baratas passeiam nas formas de bolo...

A casa tem um dono em letras.

Agora ele está pensando -

no silêncio Iíquido
com que as águas escurecem as pedras...

Um tordo avisou que é março.

IV
Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!

V
Escrever nem uma coisa Nem outra -
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

VI
No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.

VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

VII
Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural

- Que os poetas aprenderiam -
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

IX
Eu sou o medo da lucidez
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte
Que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Uma descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.




Uma Didática da Invenção
do "O Livro das Ignorãnças" ed. Civilização Brasileira.


I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com
faca
b) 0 modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas
vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência
num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega
mais ternura que um rio que flui entre 2
lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
Etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para
Dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras

IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

IX
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.




Mundo Pequeno
do livro "O Livro das Ignorãças" - ed. Civilização Brasileira.



I
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

II
Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama
e de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar
no horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas
de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais
bonitas.

IV
Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas,
Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos
de um mar extinto. Caminha sobre as conchas
dos caracóis da terra. Certa vez encontrou uma
voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não
tinha boca mesmo. "Sonora voz de uma concha",
ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas. E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: "Aromas de tomilhos dementam
cigarras." Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em Iíngua-pássaro: "Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer".
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas:
"Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos." Foi sempre um ente abençoado a
garças. Nascera engrandecido de nadezas.

VI
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.

VI
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.



Jô A. Ramos